Por Luiz Gonzaga Godoi Trigo*
 
Luiz Gonzaga Godoi Trigo
(foto: divulgação)
 
 
Para Georges Gusdorf, a consciência filosófica nasce da consciência mítica e dela separou-se lentamente. Nos espaços e nos tempos míticos surgiram histórias hoje conhecidas e recontadas, inclusive relatos de grandes deslocamentos. As viagens povoam o imaginário das civilizações desde os primórdios da história. Nas brumas dos tempos míticos ocidentais, grandes aventuras aconteciam nas viagens. Desde a Odisseia, escrita na Grécia antiga e conhecida pelo nome de poemas homéricos, até Jasão e seus argonautas (entre eles Heracles e Orfeu), os perigos e maravilhas das viagens sempre encantaram as pessoas e se reproduzem ao longo dos tempos.
 
Os motivos dessas clássicas viagens são conhecidos. Ulisses, na Odisseia, quer voltar para sua casa na ilha de Ítaca, após passar pelas dificuldades da Guerra de Tróia e vivenciar, junto à sua família e seu clã, as benesses da paz junto à sua esposa Penélope. “Ele é o símbolo da astúcia, porque sabe representar nessa zona de incerteza que separa a aparência da realidade. Encarna também a ética da viagem, do transitório e da adaptação às circunstâncias imprevistas“. (Ska: 2009)
 
O mito dos argonautas obteve uma alusão nos poemas IlíadaOdisseia, mas foi Píndaro (cerca de 462 a.C.) que lhe consagrou uma ode completa. Apolônio de Rodes (século III a.C.) compôs a epopeia em quatro cantos, intitulada Argonautas, primeira obra que chegou aos tempos atuais relatando toda a expedição de Jasão. O mito influenciou textos da idade média como a vigésima das Cartas Satíricas, intitulada Sobre um sonho (1654), de Cyrano de Bergerac.
 
Jasão busca um tesouro, o Velo de Ouro, a carcaça do carneiro divino que transportou pelos ares Frixo, o filho de um rei da Beócia. O carneiro fora oferecido como sacrifício para Zeus e a sua lã de ouro ficou estendida no alto de uma árvore, no bosque sagrado de Ares, guardada por uma serpente que nunca dormia. Ajudado por Medeia, Jasão consegue sua preciosidade e continua sua aventura que não terminará de maneira feliz por causa de seus amores impulsivos. Morre, solitário, à sombra de seu navio, Argos, morto por um profético pedaço da madeira de carvalho que despenca do barco e o mata na praia.
 
A epopeia grega relatada por Homero possui uma peculiar duplicidade, é ao mesmo tempo uma série de ações que são consideradas humanas e divinas, porém “desde o ponto de vista da concepção do mundo, a epopéia grega é mais objetiva e mais profunda que a épica medieval. Só Dante se compara a ela, em sua dimensão fundamental. A epopéia grega contém já em germe a filosofia grega. (Jaeger, 1983)
 
As viagens no mundo grego eram raras e apenas os homens livres viajavam, muitas vezes sem ser por opção própria. Porfírio, neoplatônico do fim do século III e discípulo de Plotino, esboça um perfil de Pitágoras em seu texto Vida de Pitágoras, onde afirma que ele, não suportando a tirania de Polícrates em Samos, aos quarenta anos de idade foi para o Egito, passando pela Itália. Já naquela época viajar era uma valor:
 
Quando Pitágoras desembarcou na Itália e instalou-se em Crotona, diz Dicaiarco, os cidadãos de Crotona compreenderam que eles tinham diante deles um homem que havia viajado muito, um homem excepcional, que obteve da sorte inúmeras qualidades físicas: ele era nobre e dotado de agilidade e, de sua voz, de seu caráter e de toda a sua personalidade emanava uma graça e uma beleza infinitas“.
 
Os filósofos não necessariamente viajavam. Os grandes deslocamentos eram feitos pelos militares, em suas campanhas bélicas, seja por terra ou por mar. A maior parte das populações ficava nas cidades-Estado ou em suas propriedades agrárias. Mercadores, marinheiros, alguns pensadores e militares viajavam pelas ilhas ou terras mais próximas.
 
Gore Vidal, em seu romance, Criação, conta a história de Ciro Espítama, neto de Zoroastro e embaixador do império persa que viaja pela Índia, China e Grécia, onde termina seus dias na mesma época de Péricles. Ciro conhece Buda, Confúcio e Sócrates, participa da intensa movimentação espiritual de seu tempo, no século V a.C. O texto apresenta uma grande viagem pelo mundo antigo, no momento em que alguns de seus pensadores seminais criavam suas doutrinas, formavam discípulos e estruturavam suas futuras escolas.
 
Uma viagem pela Grécia é um profundo mergulho na história, nos mitos e numa geografia instigante, com um litoral recortado, planícies férteis, montanhas escarpadas e matas cobrindo ravinas pedregosas. Há também o mar, pontilhado por centenas de ilhas cercadas de transparentes águas azuis que, quase sempre, refletem o céu anil que nos embriaga com sua profundidade infinita. Além da natureza a cultura se mostra em milhares de ruínas, templos, antigas cidades destruídas, estátuas, colunas e museus que guardam esse precioso imaginário que marcou as raízes de nossa civilização ocidental.
 
*Luiz Gonzaga Godoi Trigo é escritor, pesquisador e professor associado à Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo.

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