A pousada Uacari fica dentro de uma reserva de desenvolvimento sustentável chamada Mamirauá, localizada no médio Solimões e a cerca de uma hora e meia de barco rápido, mais conhecido como voadeira, partindo da cidade de Tefé, no Amazonas. Pequena – possui apenas dez suítes e capacidade máxima para até 25 pessoas –, é administrada por moradores de comunidades locais.

Para entender um pouco mais sobre sua história e seu funcionamento, conversamos por e-mail e telefone com Shirley Regina Vilar da Costa Piñeiro, gerente de Vendas e Marketing do empreendimento. As respostas simples e carismáticas de Seu João, que você acompanha ao final desta entrevista, foram conseguidas essencialmente graças a dois fatores: sorte e astúcia, pois ele apareceu no escritório em Tefé justamente enquanto ela preparava as respostas para o Hôtelier News. Sem pensar duas vezes, a gerente repassou algumas das perguntas a ele.

Por Karina Miotto


Só de observar a foto já dá para perceber o silêncio da pousada em meio à natureza
(fotos: Carlos Nader)

Hôtelier News: Como surgiu a idéia de construr a pousada?
Shirley Regina Vilar da Costa Piñeiro: O fundador da Reserva Mamirauá, Márcio Ayres, foi quem implementou o projeto de ecoturismo. Inserido no Plano de Manejo da reserva publicado em 1996, foi demarcada a área de 32 Km² dentro do Setor Mamirauá destinado para o ecoturismo. Em 1998 iniciou-se a construção do lodge, concluído em 2001. Entre 1998 e 2002, o produto Mamirauá passou de ad hoc para ecoturístico verdadeiro.

A evolução de uma casa com 12 dormitórios e banheiros comuns, um guia treinado e quatro comunidades envolvidas à implantação de um módulo central com dez suítes e capacidade para até 25 pessoas, 15 guias treinados e sete comunidades envolvidas, propiciou a divulgação positiva e destacada no guia de viagens Lonely Planet Brazil de 2002, que evidencia Mamirauá como conceituada operadora de ecoturismo.

Em 2003, a revista americana Condé Nast considerou a reserva o melhor destino ecoturístico do mundo. Neste mesmo ano, também recebemos o prêmio de conservação da Smithsonian Magazine e Travelers Foundation.

 
    
O primatologista Márcio Ayres faleceu em 2003 e foi o grande responsável por isso tudo.
Nestas fotos, está com o famoso Uacari branco
(fotos: brazilfoundation.org e Luís Claudio Marigo)

HN: O que surgiu primeiro? A pousada ou o instituto?
Shirley: O Instituto Mamirauá foi criado em maio de 1999. Já a pousada Uacari está em operação desde 2001, época da sua finalização estrutural.

HN: O empreendimento tem alguma ligação com o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá?
Shirley: A pousada Uacari é uma infra-estrutura turística e de mínimo impacto desenvolvida para alojamento de visitantes na reserva Mamirauá. Ela é parte integrante do programa de ecoturismo do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e está situada no coração da reserva.

Conta com sete flutuantes ligados entre si por meio de passarelas de madeira, sendo um deles para alojamento de colaboradores. O central possui dois pisos com áreas de lazer, restaurante, biblioteca e sala de apresentações com capacidade para até 25 pessoas. Os demais flutuantes servem de acomodações para os visitantes da reserva.


Flutuantes da pousada Uacari

HN: Por que a pousada acredita no ecoturismo?
Shirley: A pousada Uacari tem como premissas promover a conservação dos recursos naturais e atuar como fonte de renda para as comunidades locais. Isso diminui a pressão sobre o uso contínuo destes recursos e promove a reposição natural dos mesmos, sem falar na melhoria da qualidade de vida das populações locais e da oportunidade de crescimento e envolvimento junto ao projeto.

“Para atingir tais objetivos, o programa de ecoturismo desenvolveu
através dos anos as seguintes ações: pesquisas e estudos de
viabilidade para o planejamento turístico, implantação de
infra-estrutura de mínimo impacto, promoção da capacitação
do pessoal local e sua organização comunitária,
geração de benefícios sócio-econômicos para a população
e monitoramento ambiental e social para a minimização dos
impactos gerados pela atividade” – Nelissa Peralta,
coordenadora do programa de ecoturismo em Mamirauá

HN: Quais os tipos de animais que mais comumente são vistos perto das suítes da pousada?
Shirley: A reserva Mamirauá é a maior área de várzea protegida do mundo e sua diversidade é rica e abundante. Já foram registradas cerca de 35 espécies de mamíferos, por volta de 360 de aves, 79 de répteis e 300 de peixes. É o berço de espécies endêmicas e ameaçadas de extinção. 

O jacaré açu (Melanosuchs niger), maior predador da América do Sul, é facilmente avistado nos arredores da pousada e tem a maior população conhecida na Amazônia. Também vemos macacos guariba – é preciso ter um olho bem clínico para percebê-los. O avistamento de animais é maior nas trilhas.

HN: Quanto colaboradores possui? Quantos são moradores locais?
Shirley: A pousada conta com nove colaboradores, sendo que gerente, governanta, supervisor de Barcos e de Guias são todos residentes comunitários e lá permanecem constantemente. Já a gerente de Marketing e Vendas, e o assistente e auxiliar administrativo atuam no escritório situado na cidade de Tefé (AM). A pousada também emprega dois guias naturalistas bilíngües. 

Os comunitários fazem parte do elenco para bem servir aos visitantes e participam do programa de diversas formas: na alocação de mão-de-obra para serviços de hotelaria e condução de turistas, na venda de produtos, no gerenciamento da pousada, nas tomadas de decisões por meio da Associação de Guias e Auxiliares de Ecoturismo (Aagemam), vendendo artesanato, recepcionando as pessoas em suas comunidades e na divisão da receita excedente. Atualmente a entidade conta com 54 colaboradores que participam do projeto por um sistema de rodízio de acordo com a demanda turística na pousada Uacari.

HN: Por que só 54 pessoas estão cadastradas para trabalhar na reserva?
Shirley: Vai do interesse e também da distância entre as residências e a pousada. Afinal, a área da reserva é de 1,124 milhão hectare (o equivalente a 11,24 bilhão m²).

HN: Todas as decisões sobre a pousada são tomadas mediante consulta às pessoas dessas comunidades?
Shirley: Sim, desde questões referentes a melhorias até investimentos. Ao final de cada ano, a receita é dividida entre todos. Por isso, o grande envolvimento. Se gerirem bem, terão lucro.

HN: A pousada tem registrado lucro?
Shirley: Sim. De 1999 a 2006, o projeto de ecoturismo gerou renda de R$ 631 mil.

HN: Quantas pessoas moram na reserva?
Shirley: Cerca de 500.

HN: A que deve o sucesso da pousada Uacari?
Shirley: À participação comunitária, às bases cientificas e à responsabilidade social e ambiental.

HN: O meio de hospedagem possui quantas suítes?
Shirley: São dez unidades habitacionais de 25 m² cada. Todas com banheiro privativo, água quente e fria, duas camas king size, telas nas janelas, mosqueteiro, varanda e ventilador pequeno.


Entrada de uma das cabanas

HN: Vocês pretendem aumentar o número de suítes?
Shirley: Por enquanto ainda não, pois a quantidade corresponde à demanda de turistas que nós temos. Além disso, por tratar-se de uma área de conservação ambiental, há constante monitoramento no que se refere ao impacto ambiental gerado pela visitação à área conservada. Neste sentido, não é aconselhável receber grandes grupos de turistas, pois isso pode trazer resultados negativos e irreversíveis ao meio ambiente. Estabelecemos o patamar de 1 mil visitantes anualmente ou a média de 80 turistas por mês.

HN: Quais são os meses de maior e de menor ocupação?
Shirley: A alta temporada é entre julho e agosto. Por ser época de férias, é um período bastante procurado. E a baixa é de janeiro a março devido às datas celebrativas como o carnaval, por exemplo. Além disso, essa também é uma época de chuvas na região.

HN: Qual é a diária média?
Shirley: Não temos uma diária, vendemos apenas pacotes. O de três noites custa R$ 1 mil. O de quatro, R$ 1,2 mil, e o de sete, R$ 2 mil.

HN: Qual foi a última reforma na Pousada Uacari? 
Shirley: Em maio do ano passado um novo flutuante central foi inaugurado. Atualmente, as estruturas são cobertas com palha e desenhadas para minimizar o impacto ambiental. A pousada também faz uso da coleta de água da chuva, utiliza energia solar e tem sistema de filtragem de dejetos.

HN: Como funciona esse sistema de filtragem?
Shirley: Atualmente temos nove sistemas de caixas que contêm carvão, areia e seixo. Os dejetos passam por este sistema de filtragem antes de serem retirados da caixa e enterrados.

“A reserva é uma unidade de conservação estadual localizada no
médio Solimões. Foi declarada uma área protegida
primeiramente em 1990 como Estação Ecológica. Em 1996,
depois da publicação do
Plano de Manejo
, foi categorizada
como reserva de desenvolvimento sustentável, combinando a
conservação da área com o uso manejado de recursos
pela população local” – informações do site da reserva

HN: Como a pousada gerencia os resíduos sólidos produzidos na reserva?
Shirley: Os lixos orgânico e o inorgânico são separados, sendo que o último é vendido. Já o orgânico é decomposto por um processo que transforma materiais grosseiros como palha e restos de comida em substância orgânica para adubo de hortas e jardins.

HN: Quantos livros e vídeos são disponibilizados aos hóspedes? Poderiam citar alguns nomes? As pessoas se interessam em ler ou ver vídeos em um lugar como a reserva?
Shirley: A pousada disponibiliza uma pequena biblioteca com acervo de livros científicos e documentários com informações pertinentes à reserva Mamirauá. As pessoas se interessam sim. Por isso, uma das atividades de um dos pacotes é assistir vídeos sobre o local.

HN: Por que o restaurante do empreendimento não serve carne vermelha?
Shirley: Por diversas razões. Uma delas é o acesso à Pousada Uacari. Como o caminho não é rápido e fácil, há dificuldade para conservação dos alimentos e a criação e o abatedouro de gado não fazem parte da rotina das comunidades. Além disso, a carne vermelha não integra a dieta habitual dos moradores da região e cerca de 30% dos visitantes são vegetarianos.


Shirley Regina Vilar da Costa Piñeiro, gerente de
Vendas e Marketing da Pousada Uacari, e
Nelissa Peralta, coordenadora do programa
de ecoturismo na reserva Mamirauá
(foto: divulgação)

HN: A distância é um fator bom ou ruim para quem quer chegar à pousada Uacari?
Shirley: A distância, ao mesmo tempo em que prejudica na escolha deste destino para turismo, é um atrativo para quem deseja fugir do corre-corre e do estresse dos grandes centros. Em meio a este paradoxo, a questão social prevalece e aquilo que seria apenas uma viagem de aventura converte-se em benefícios para os ribeirinhos.
  
HN: O público é essencialmente ecoturista?
Shirley: Sim.

HN: Como anda a visitação de hóspedes brasileiros?
Shirley: Os visitantes brasileiros representam cerca de 30% do total. O resto fica por conta do turismo estrangeiro. Na ordem, americanos equivalem a 16%, britânicos a 9% e franceses a 7%.

HN: Quais as informações transmitidas aos hóspedes quando chegam à pousada?
Shirley: O guia naturalista fala sobre a necessidade de economia de energia visto que a alimentação das estruturas é por meio de energia solar e que a água do rio é imprópria para consumo e para nado, já que esta é uma região com piranhas e jacarés. Conta-se ainda sobre a programação e o horário das refeições, a proibição de bebidas alcoólicas e de visitar trilhas desacompanhados, a necessidade de usar coletes quando em barcos ou voadeiras, não tocar em árvores e arbustos, o que fazer com o lixo, a necessidade do uso de repelentes e filtro solar e o cuidado que precisam ter ao entrar em contato com os moradores das comunidades, entre outros temas.

“Em Mamirauá as visitas às comunidades foram elaboradas
utilizando metodologias participativas para que a população
local pudesse identificar as atrações existentes em cada
comunidade, segundo sua própria visão de atratividade,
e estabelecer regras de conduta para os
turistas durante estas visitas” – Nelissa

HN: Depois desta explicação, as pessoas podem conhecer todos os colaboradores?
Shirley: Sim. O hóspede é recepcionado pelo guia naturalista, pelo gerente, pela governanta, guias locais e barqueiros. Enfim, pelo staff responsável para que aquele visitante tenha uma boa estada.

HN: Qual a diferença entre o guia local e o naturalista?
Shirley: O local é residente da reserva, oriundo da própria região, faz parte da Aageman e tem conhecimento intrínseco da floresta e destreza refinada para avistar animais na mata selvagem. Por sua vez, o naturalista é de fora, graduado em Biologia, possui conhecimento acadêmico e é bilíngüe.

HN: Quais são as atividades mais apreciadas pelos hóspedes?
Shirley: O passeio em canoa com capacidade para duas pessoas e um guia local dentro da floresta inundada no período da cheia (abril a agosto) é nosso ponto forte. Com o transporte é possível chegar até os lagos, canos, igapós e igarapés, proporcionando maior facilidade de avistamento da fauna amazônica e de espécies endêmicas, caso do Uacari branco (Cacajao calvus calvus).

No entanto, observamos que a pescaria artesanal também tem sido muito apreciada. Os hóspedes aprendem técnicas de acordo com os conhecimentos tradicionais, transmitidos de geração em geração.

“Você estará em uma área de proteção ambiental. Pelas leis
brasileiras, é expressamente proibido retirar qualquer espécie
de material da reserva (plantas, animais, ovos, flores,
sementes, etc). A direção do ecoturismo estará atenta
a esta norma para benefício da vida selvagem da reserva.
Você encontrará lixeiras na casa flutuante para jogar lixo.
Não é permitido jogar lixo (papel, sacos plásticos, latas,
copos, etc) na área da reserva, por se tornar material
poluente que causa sérios problemas aos animais,
plantas e a água. Faça silêncio e não use roupas de
cores muito fortes, assim suas chances de avistar
animais serão maiores. Não tocar nos arbustos,
árvores (animais venenosos, como escorpião, formiga
de fogo e aranhas, vivem lá e são difíceis de serem
vistos)” – informações do site da reserva

HN: Quais as principais diferenças que as pessoas notam entre seus hábitos urbanos e os dos ribeirinhos quando visitam as comunidades?
Shirley: Primeiro, a questão da alimentação e da moradia, que são muitos diferentes. Apesar da timidez dos comunitários, eles são bem receptivos. Se o visitante não puxar assunto, o ribeirinho também não vai puxar.

A cultura das comunidades é bem diferenciada da urbana, por isso é preciso estar atento a uma série de observações para evitar um impacto social negativo. Daí o porquê de certas recomendações, das quais já falamos.

HN: A pousada oferece cursos profissionalizantes às pessoas das comunidades?
Shirley: Sim. Para melhoria do atendimento e qualificação, a população local pode fazer curso de primeiros socorros, governança, alimentos & bebidas, condução de visitantes, inglês, gerência, interpretação ambiental e liderança.

HN: O gerente geral mora dentro da reserva?
Shirley: Exatamente. João da Silva Carvalho ingressou no quadro de colaboradores em 2000, inicialmente como guia local e mais tarde foi promovido a gerente de Manutenção. Seu João, como é chamado por todos, faz parte da comunidade Vila Alencar, situada a 25 minutos de voadeira da pousada.


Seu João
(foto: divulgação)

João da Silva Carvalho: Gosto de morar na reserva porque meu pai e minha mãe viveram lá. Eu também cresci neste ambiente e sempre gostei de plantar, cuidar da agricultura e pescar. Depois que foi criada a reserva Mamirauá, a qualidade de vida melhorou muito para os moradores locais. Hoje tenho outra fonte de renda.

HN: Como é viver e trabalhar em uma reserva?
Carvalho: É muito bom. Trabalho dia a dia vendo o que falta e o que precisa, de manhã até a noite. No tempo da cheia a gente só vê a água passar por debaixo do flutuante. Na seca, vemos os peixes pulando, os macacos gritando, os jacarés nadando. Para quem gosta da natureza, este é o melhor lugar. Se quiser aproveitar o silêncio da noite é só pegar uma canoa e ficar no meio do rio olhando o céu estrelado.

HN: Trocaria o cantinho em Mamirauá por outro lugar do mundo?
Carvalho: Até agora eu não penso em ir embora da reserva.

Serviço
www.uakarilodge.com.br