Marcelo Traldi, consultor, palestrante e professor do Senac São Paulo
(fotos: Hugo Massahiro Okada)

Se você é um profissional do segmento gastronômico, certamente deve ter lido o nome de Marcelo Traldi estampado em alguma publicação ou matéria sobre o tema, ou então – num cenário ainda melhor – foi aluno em uma das muitas turmas que ele formou no Senac São Paulo. E você pode até não integrar este universo, mas se é fã de esportes e acompanhou atento à realização dos Jogos Olímpicos, indiretamente também acompanhou seu trabalho.

Traldi foi responsável pela alimentação de 70 mil pessoas por dia, entre atletas, delegações e colaboradores da Vila dos Atletas erguida no Rio de Janeiro durante a Olímpiada 2016. Com a fala muito tranquila e sempre mantendo uma expressão simpática, o profissional contou um pouco da sua história à reportagem do Hôtelier News.

O profissional é paulistano e formado em Gestão de Hospitalidade pelo Senac, na terceira turma do curso, no ano de 1994, onde desenvolveu seu interesse pelo setor de Alimentos e Bebidas. Em seguida, fez a pós-graduação em Gestão Hoteleira e Gestão de Hospitalidade, ambos desenvolvidos pelo Hotel Escola Senac Grogotó, em Minas Gerais. "Era um projeto piloto que o Senac estava começando, com 30 bolsistas do Brasil e alguns da América do Sul. Isso em 1994", conta. "Ao terminar a pós-graduação, retornei para São Paulo, onde atuei como gerente operacional do Jockey Club, na região da Cidade Jardim".

Marcelo também acumula em seu currículo acadêmico, passagens pela Florida International University (EUA) no curso Restaurant Development and Fast Food Management, Food and Beverage (2000); PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), onde fez mestrado em Administração de Empresas, Administração e Negócios (2002-2004); The Culinary Institute of America, no curso Menu Research and Development (2005); Babson College, no curso Administração e Negócios (2008-2010); US State Department, onde participou de um intercâmbio com mais 20 países "para estimular e desenvolver a gastronomia como instrumento facilitador de relações diplomáticas" (2012); e Cornell University, no curso de Marketing e Inovação em Hospitalidade, Administração e Negócios, em parceria com o Senac (2012).

Logo após a experiência no Jockey Club, Traldi passou a dividir seu tempo entre as aulas que leciona até hoje e as muitas consultorias. "Quis manter os dois lados, tanto o acadêmico, quanto o de profissional de mercado. Durante muito tempo segui nesses dois campos de atuação. No Senac já são 17 anos como professor", explica.

Paralelamente às aulas, envolveu-se em diversos projetos importantes como a implementação do restaurantes norte-americanos Hooters e Hard Rock Café no País, até assumir a diretoria da empresa Mystery Shopping, do Grupo Kronberg, onde já atuava como consultor, dando treinamentos para diversas redes hoteleiras do Brasil. A empresa é especializada em clientes ocultos e, na época, atendia marcas da hospitalidade tais como o Copacabana Palace, Caesar Park, Pestana e Marina Hotéis. "Eu comecei em Portugal com eles (Pestana), onde treinavámos a rede em Cascais, Sintra e Lisboa", relembra. Foram três anos até se tornar um dos sócios do Le Bou Bistro em São Paulo, restaurante que ganhou destaque ao desafiar os clientes a pagarem o que achassem justo pelo prato.


"Para diferentes usos, existem diferentes qualidades"

Hotelaria
"Na hotelaria, a minha atuação sempre foi ligada ao setor de Alimentos e Bebidas. O que nós fazíamos era desenvolver as equipes e trabalhar nelas o foco em qualidade de atendimento, mas sempre vizualizando os resultados. Esses resultados, dependendo do momento da empresa e dos seus objetivos, eram mensurados de forma diferenciada. Tinham empresas, por exemplo, que o aspecto mais interessante era o aumento do couvert médio, em outras esse aumento era direcionado às vendas adicionais, no cross-selling. Algumas queriam aumentar a satisfação do hóspede como elemento prioritário, aliás nenhuma delas abre mão de resultado financeiro, mas o primeiro elemento sempre foi a satisfação do hóspede, até porque ou estavam em fase de inauguração ou reposicionamento, e queriam a sua consolidação no mercado. Com base nessas métricas, trabalhávamos as equipes a fim de atingir esses objetivos".

Neste segmento, Traldi atuou com grandes empreendimentos e redes como Caesar Park, Hotel Unique, Grupo Pestana e Blue Tree (por meio do Noah – atual Villa Blue Tree). "Também tinha a parte de clientes ocultos, na qual nossos principais clientes eram produtos hoteleiros no começo, porque depois fomos expandindo para o varejo. Na hotelaria tínhamos JW Marriott, Copacabana Palace, a AccorHotels, entre outras. Isso dentro da Signature/Kronberg. Mas também atuei em redes dentro e fora do Brasil como consultor ou como palestrante", complementa.

Ao ser questionado sobre a diferença na operação de Alimentos e Bebidas em um hotel de luxo e um econômico, Traldi destaca o entendimento acerca da qualidade e adequação ao uso. "Para diferentes usos, existem diferentes qualidades. Por exemplo, mesmo dentro de um hotel, se eu tenho um ponto de venda destinado para pessoas que querem apenas um café, eu posso desenvolver um produto adequado a este uso porque eu entendo qual é a razão de existir daquele ponto e a motivação do meu hóspede em utilizá-lo. Você pondera se ele está em um momento mais formal, se ele tem pressa em ser atendido, e ai vai adequando todo seu produto à combinação ambiente-serviços-cardápio-preço-público. Em seguida, tem de responder a estas cinco perguntas: o que eu sirvo, para quem eu sirvo, a quanto eu sirvo, como e onde eu sirvo. Essas cinco questões são os principais elementos que se deve ter como base para atender o seu público. Entender por quê o cliente vem, faz com que o empreendedor consiga desenvolver os cinco elementos de forma mais precisa, atingindo assim seus objetivos".

Dentro deste cenário, o conhecimento de mercado e do público a ser atingido é determinante para o sucesso de um restaurante. De acordo com o professor, "o hoteleiro e o desenvolvedor devem conhecer bem o público e identificar as suas expectativas. Porque essas expectativas estão atreladas às experiências anteriores que eles tiveram em outros restaurantes e países. O que tem sido discutido sobre restaurante midscale, fast casual… este olhar geral é extremamente importante. O uso é o ponto importante, independente do tamanho e da complexidade do empreendimento".


"O projeto Alunos no Comando cresceu, saiu da caixa e se tornou uma atividade não só do curso de Hotelaria, mas de todo o Centro Universitário"

Alunos no Comando!
Dentro de sua atuação no Senac, Traldi é tutor do projeto Alunos no Comando, uma parceria da instituição com a Cornell University na qual os alunos são desafiados a gerenciar toda a estrutura de um dos dois hotéis escola do Senac São Paulo durante um final de semana. São dez meses de planejamento de processos, desde o desenho das estruturas de Recursos Humanos, passando pelo planejamento financeiro, vendas e operações até a execução e a avaliação pós-evento.

"Essa foi uma iniciativa do Senac que começou em parceria com a Cornell University. Entendemos o modelo deles e, muito mais que o modelo, entendemos a dimensão que isso podia ter processo formativo. E acabamos adaptando esse modelo e hoje o nosso Alunos no Comando é muito maior do que o projeto da Cornell, cujo modelo é o de um evento de um dia, enquanto o nosso toma dimensões muito maiores do que a proposta original", conta o professor.

Entre as "melhorias" realizadas no projeto, um dos destaques reside, segundo Traldi, na incorporação de outros cursos que complementam a operação hoteleira, mesmo não fazendo parte da grade de ensino: "Acabamos englobando não só a hotelaria, mas também outras áreas de expertise de dentro do Senac para compor o projeto. Por exemplo, se o Senac tem um curso de estética, convidamos alguns alunos para a área de tratamentos e massagens do spa. Do curso de Educação Física, chamamos alguns para a monitoração e orientação de atividades e recreação. Do curso de fotografia, incentivamos a participação no registro dos dois dias e no oferecimento de workshops para os hóspedes. Em resumo, o projeto saiu da caixa totalmente, tornando-se uma atividade não apenas do curso, mas sim de todo o centro universitário".

De acordo com o professor, o projeto, que este ano chega à sua 5ª edição, já é visto pelos alunos e membros do corpo docente como uma perspectiva de desenvolvimento de carreira.

O Curso de Hotelaria ainda possui a mesma relevância de anos atrás?
Para muitos entendidos, o universo dos cursos e módulos de aprendizado voltados à hotelaria mudou muito se comparado a quinze ou vinte anos atrás. Hoje, ao mesmo tempo em que há uma escassez de cursos com conteúdo relevante, também existe uma hiper oferta de instituições acadêmicas que oferecem a graduação. Na opinião do professor, essas mudanças são naturais e acompanham as tendências de mercado dentro da realidade econômica do País.

Traldi: "Para explicar isso, eu uso o exemplo do desenvolvimento de qualquer ecossistema. Quando um determinado grupo de indíviduos encontra um ambiente com condições naturais para seu desenvolvimento, ele vai crescendo. Na hora em que se atinge um pico especifíco de maturidade entre o grupo e o ambiente, esse crescimento vai diminuindo, até estacionar. Se usarmos essa analogia para o ciclo de vida de qualquer produto – crescimento e desenvolvimento – encontramos o que aconteceu também com a hotelaria e gastronomia. Originalmente no Brasil, esses eram temas estudados pelo Turismo, durante os anos 1960 e 1970, com exceção de alguns cursos técnicos. Logo as federais e outras universidades começaram a oferecer o curso de Turismo, que depois passou a ser dividido em segmentos, surgindo assim o curso de Hotelaria, Gastronomia, e a partir desses, ainda outros como Eventos. Ou seja, muitas instituições perceberam estes cursos com oportunidade de mercado. E agora vivemos uma espécie de ajuste desse mercado".

O universo acadêmico se adequou a esses ajustes?
Traldi: "Temos uma limitação muito grande do sistema regulatório de ensino. Por mais que se queira criar cursos extremamente inovadores com disciplinas inovadoras, e etc, você tem de se encaixar dentro de um certo modelo de carga horária e registro de atividades que de certa maneira,  engessa um pouco a capacidade de criação desses cursos inovadores. De certa forma, também não estamos acostumados com isso. Se você desenvolve um sistema de educação por tarefa, o aluno logo pergunta: 'não tem aula hoje professor?', sendo que a aula é aquela mesmo, a vivência, a experiência, os projetos, as palestras. O modelo que temos de ensino não se adequa mais aos meus filhos, por exemplo. Por isso tento fugir desse modelo professor falando e aluno ouvindo. Eu sou mais pelo desafio e tenho diversas técnicas para isso".

Traldi segue até hoje atuando como professor

Olímpiada e Paralímpiada 2016 – A experiência na Vila dos Atletas
Traldi: "Eu nunca tinha ido a uma Olímpiada. Nunca tinha ido assistir um dos jogos olímpicos, nada disso. O primeiro contato que eu tive com esse evento foi trabalhando nele. E foi lá que eu tive a noção da proporção do que estava acontecendo".

O convite para participar do projeto de Alimentos e Bebidas da Vila dos Atletas durante a Olímpiada e Paralímpiada 2016, no Rio de Janeiro,  partiu de uma ex-aluna, Veridiana Correia, diretora da Sappore, empresa vencedora da licitação para a operação de alimentos e bebidas da Vila dos Atletas. "Fui participar de uma mesa redonda de nutrição e ela estava lá. Conversamos e ela me convidou para um projeto na Sappore que acabou não rolando. Mantivemos contato e, quando a Sappore assinou o contrato com o Comitê, ela me ligou e falou do projeto. Quando lhe perguntei por que eu, ela me respondeu que se chamasse só um chef de cozinha, não seria o suficiente, se chamasse um gestor, também não seria suficiente e se chamasse alguém de nutrição, também não seria o bastante. Então ela me fez esse convite, que aceitei prontamente".

O planejamento do serviço de alimentação para a Vila dos Atletas começou cerca de um ano antes do início dos jogos e envolveu diversas "operações dentro da operação", com seleção de fornecedores, estudo dos tipos de comida a serem servidas, práticas para evitar desperdícios, desenho das estações, criação de um método de trabalho por parte da equipe, já que a tenda (a maior do mundo no serviço de alimentos e bebidas) funcionaria 24h nos sete dias da semana, além de uma série de pré-requisitos da Comitê Olímpico.

Alimentando 70 mil pessoas por dia; os números da Olímpiada
Traldi: "Foi a primeira vez que uma empresa diferente assumiu essa operação em 25 anos. E foi uma empresa brasileira. De mais de dois mil envolvidos, eu tinha ali 25 ex-alunos, todos em posição de liderança. Isso foi muito gratificante. Os números eram no mínimo curiosos: diariamente eram consumidas duas toneladas de carne, duas toneladas de frango, uma tonelada e meia de peixe, seis toneladas de frutas, uma tonelada e meia de verduras e três de legumes. Claro que isso no pico, depois foi variando. Também serviamos três mil pizzas e 150 mil pães por dia. É bom ressaltar que eram todos produtos nacionais, uma ou outra coisa importada, como os produtos asiáticos, alguns temperos, alguns molhos, mas de um modo geral, a maioria foi encontrada no Brasil".

Como diretor de Operações para a Vila dos Atletas, Traldi coordenou os serviços dos espaços: Main Dining, segundo maior restaurante do mundo com 5,2 mil assentos e a maior estrutura provisória de alimentação do mundo, servindo por 24 horas, sete dias por semana, aproximadamente 70 mil refeições por dia; Workforce Dining, restaurante para colaboradores que servia dez mil refeições por dia (café da manhã, almoço, jantar e ceia); Casual Dining, "único espaço onde eram servidas frituras", segundo o professor, com conceito mais informal, onde eram servidos churrasco, sanduíches e petiscos brasileiros, atendendo em média, 3,5 mil refeições por dia; Eventos e Protocolo, com serviço para eventos dos chefes de missão e gestores da Vila; e o Grab and Go, sete estações de serviços localizados nos condomínios, onde atletas e delegações encontravam leite, café, muffins, frutas, iogurtes e barras de cereais a qualquer hora do dia e da noite.

Traldi: "Você entrava no restaurante e via que ele era duplicado. Tudo o que tinha na direita, tinha na esquerda. A área central, em formato de Y, era composta pela cozinha Brasil, a maior área, bem em frente. Isso é uma regra do Comitê, a de que a cozinha local deve ser mais a mais explorada. Depois, tínhamos a cozinha do mundo, World Flavor, que era basicamente a americana e européia e depois as cozinhas Ásia e Índia, Halal e Kosher e Pizza e Pasta; na construção do cardápio, alguns pratos eram vegetarianos. Eu não colocava linguiça no feijão, por exemplo. Tudo que eu pudesse adaptar para glúten free e vegetariano, eu fazia".

Aliás, o glúten foi um dos causadores de polêmicas nesse período. Traldi: "De acordo com a legislação brasileira, se eu manipulo produtos sem glúten no mesmo ambiente em que estão outros que contém glúten, eu não posso colocar uma placa glúten free em nenhum local do restaurante. Tive de atender vários atletas, mostrar a cozinha e explicar porque eu não podia afirmar que era glúten free. Eles perguntavam: 'mas é sem glúten?' e eu reforçava e explicava tudo novamente. Mas tínhamos produtos totalmente sem glúten e embalados separadamente, todos importados".

Outra demanda enorme foi a de grelhados. "Durante a operação, mudamos 20% das nossas estações para que contemplasse e desse mais atenção para grelhados sem a adição de molhos ou temperos. Isso foi uma demanda até do Comitê Internacional a pedido dos atletas".

"Aprendi muito nesse período. Depois de fazer um evento dessa magnitude, você pensa o que pode vir pela frente que se iguale a essa experiência. Pouquissímas pessoas tiveram a oportunidade de fazer o que fizemos. Sou professor e vou voltar a ser professor. Estou sempre aberto a novos desafios", finaliza Traldi.

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