sexta-feira, 5/setembro
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A hotelaria está pronta para mitigar riscos psicossociais dos colaboradores?

A partir do dia 26 de maio, as empresas brasileiras precisarão incluir a avaliação de riscos psicossociais no processo de SST (Segurança e Saúde no Trabalho). A exigência é fruto da atualização da NR-1 (Norma Regulamentadora nº 1), promovida pelo MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), em agosto do ano passado. Mas será que a hotelaria está pronta para adotar um planejamento de risco à saúde mental dos colaboradores?

A mudança da NR-1 destaca que riscos psicossociais, como estresse, assédio e carga mental excessiva, devem ser identificados e gerenciados pelas empresas como parte das medidas de proteção à saúde dos colaboradores.

No ano passado, o Brasil registrou mais de 400 mil afastamentos do trabalho por conta de transtornos mentais, segundo dados do Ministério da Previdência Social. As principais causas, de acordo com a pasta, são ansiedade (141,4 mil) e depressão (113,6 mil).

Mas o que são riscos psicossociais? Segundo o MTE, são riscos relacionados à organização do trabalho e às interações interpessoais no ambiente laboral. Eles incluem fatores como metas excessivas, jornadas extensas, ausência de suporte, assédio moral, conflitos interpessoais e falta de autonomia no trabalho.

Maria Cristina
Maria Cristina destaca a rotina dos hotéis como agravante

Riscos no setor hoteleiro

Como uma indústria que funciona 24 horas por dia, sete dias por semana e 365 dias por ano, o setor hoteleiro é um prato cheio para riscos à saúde mental dos colaboradores. Com o prazo batendo à porta para a finalização do planejamento das empresas, os hotéis precisam se apressar.

Para a psicóloga Maria Cristina de Carvalho e Silva, que acumula 17 anos de experiência em gestão de pessoas no setor hoteleiro, o ritmo acelerado da rotina dos empreendimentos, assim como a dinâmica do trabalho, podem interferir na saúde mental dos profissionais caso não haja atenção especial por parte das empresas.

“Após a pandemia, esses problemas se acentuaram significativamente, devido especialmente a evasão de profissionais do setor, ocasionando jornadas de trabalho exaustivas e aumento de exigências em relação ao atingimento de metas”, pontua a psicóloga e diretora da Umani Gestão de Pessoas.

Maria Cristina destaca que o frequente aumento de afastamentos por depressão, Burnout, ansiedade e estresse ligou um sinal de alerta para a falta de preparo tanto das empresas, quanto das lideranças, tornando ainda mais difícil a prevenção dos problemas.

“As jornadas de trabalho excessivas, aliadas a baixa remuneração, tem impedido os colaboradores de investirem em qualidade de vida e, muitas vezes, o próprio preconceito por parte dos profissionais, dificulta o acesso a tratamentos e terapias essenciais para a manutenção da saúde mental”, diz Maria Cristina.

Negligenciar essa realidade pode comprometer a longevidade das empresas, tornando-as menos produtivas, menos criativas e menos saudáveis física e mentalmente. Para a psicóloga, o setor ainda possui pouca maturidade quanto aos riscos psicossociais dos trabalhadores.

“Infelizmente, o que vemos na maior parte das empresas é um modelo de gestão focado na busca incessante por resultados e líderes que não proporcionam segurança psicológica para suas equipes. Na minha opinião, o grande segredo é investir em uma mudança cultural, promovida por meio da mudança de postura dos gestores”, avalia Maria Cristina.

Para a profissional, as lideranças devem desenvolver habilidades de gestão de pessoas para engajar os times com eficácia, mas de forma humanizada, despertando o senso de propósito dos funcionários. “É preciso rever com urgência o modelo de liderança, a forma de cobrança, as escalas de trabalho e as perspectivas de carreira na hotelaria para que mudanças sejam implementadas. O setor ainda não percebeu a necessidade de repensar a qualidade de vida de seus colaboradores”, analisa.

Segundo Maria Cristina, a saúde mental deve ser prioridade em qualquer empresa, independente do segmento. “É essencial que o RH acompanhe de perto as operações para analisar a qualidade dos relacionamentos interpessoais, carga horária, exigências por metas e possíveis comportamentos inadequados por parte dos gestores, caracterizando assédio moral ou até mesmo sexual”, reforça.

A psicóloga afirma que as empresas dão atenção ao tema em campanhas como Janeiro Branco e Setembro Amarelo, porém, Maria Cristina salienta que essas ações devem ser contínuas para que se sustentem ao longo do tempo. “Quando o colaborador encontra um clima laboral positivo, sente que tem apoio por parte da empresa quando se depara com algum problema e percebe que é valorizado, tende a produzir mais e melhor”.

Natalia Maturana
Natalia ressalta as ações do Wish

Mudando a cultura

Lucila Quintino, CEO da HotelConsult, explica que o ponto de partida deve ser a mudança de cultura da empresa. Para a executiva, o processo deve acontecer de cima para baixo, sendo levado da alta gestão para os demais departamentos. “Aculturar as lideranças é o começo para a necessidade de planejamento. A empresa deve desenvolver ações neste contexto, trazendo essa consciência para o restante da equipe. Todos os níveis de líderes devem ser capacitados para saber como lidar nessas situações”.

Ao traçar os riscos psicossociais, os times se sentem mais seguros ao saber que a empresa está olhando para o tema. E definir estratégias de comunicação é um dos principais pilares para uma gestão eficiente da saúde mental das equipes. “Essa atualização da NR-1 reforça a necessidade dos hotéis contarem com o apoio de especialistas e, desta forma, garantir o mapeamento de riscos. Dentro das empresas, muitas vezes, os colaboradores nem sabem das ações de saúde mental disponíveis”, pontua Lucila.

Maria Cristina corrobora com a questão, destacando que de nada adianta implementar programas de saúde mental, adquirir aplicativos ou contratar consultores se não houver uma mudança cultural que respalde as ações de forma genuína. “O desenvolvimento de uma liderança consciente, comprometida em construir uma cultura organizacional consolidada em valores éticos, que promova a escuta ativa, a transparência nas decisões, o reconhecimento por um trabalho bem-feito e a coesão da equipe é o passo inicial para essa transformação organizacional acontecer de forma sustentável. A cultura não muda somente porque queremos mudá-la”.

Recentemente, o Grupo Wish apresentou sua nova cultura organizacional, com foco em propósito e pautada em escuta ativa dos colaboradores. Natalia Maturana, diretora de RH/Talento e Cultura, explica que o equilíbrio é uma das prioridades da rede hoteleira. Ainda que a empresa venha promovendo transformações internas, as adequações aos riscos psicossociais estão em fase de aprimoramento.

“Precisamos desenvolver laudos sobre os possíveis riscos psicossociais. A NR-1 é um norte para as empresas, mas o Grupo Wish já vinha desenvolvendo iniciativas mesmo antes do lançamento do novo modelo organizacional. Lançamos o programa Equilíbrio, desenhado para que os colaboradores tenham cuidado com a saúde mental”, conta a diretora.

No Grupo Wish, a máxima é que a saúde mental é um cuidado compartilhado, sendo 50% de responsabilidade da empresa e 50% por parte do colaborador. “Quando divulgamos o programa, falamos muito do 50-50. Nós entregamos as ações, mas eles precisam ter disciplina e autocuidado. É um compromisso mútuo”, ressalta Natalia.
Iniciativas mutidisciplinares

Em nota publicada no site do MTE, Viviane Forte, coordenadora-geral de Fiscalização em Segurança e Saúde no Trabalho, ressalta que a NR-1 já exigia que todos os riscos no ambiente de trabalho sejam reconhecidos e controlados, porém havia dúvidas sobre a inclusão explícita dos riscos psicossociais. A atualização, segundo ela, esclarece justamente o que os empregadores precisam.

“Os empregadores devem identificar e avaliar riscos psicossociais em seus ambientes de trabalho, independentemente do porte da empresa. Caso os riscos sejam identificados, será necessário elaborar e implementar planos de ação, incluindo medidas preventivas e corretivas, como reorganização do trabalho ou melhorias nos relacionamentos interpessoais. Além disso, as ações adotadas deverão ser monitoradas continuamente para avaliar sua eficácia e revisadas sempre que necessário,” explica.

Diretor de RH do Holiday Inn Parque Anhembi, Overlando Rodrigues Silva pondera que, muitas vezes, os gestores e colaboradores não têm conhecimento das iniciativas oferecidas pelas empresas. “Grandes redes, como é o caso da IHG, têm amplo suporte de ações, mas as lideranças precisam se conscientizar”.

O empreendimento paulistano promoveu uma palestra sobre conscientização à saúde mental, abordando a importância do reconhecimento e do tratamento adequado de transtornos psicológicos no ambiente de trabalho.

“Contamos com três pilares básicos: conscientização, prevenção e cuidado. A NR-1 estabeleceu uma nova vertente de diagnóstico que ainda precisamos trabalhar. Porém, realizamos palestras regulares sobre o tema, assim como o uso de ferramentas disponíveis e materiais de divulgação em boletins semanais”, salienta o diretor.

O Holiday Inn Parque Anhembi oferece consultas com nutricionistas, preparadores físicos, plataformas de aconselhamentos gratuitas, além de aplicativos de exercícios físicos e de meditação. A IHG ainda conta com o IHG Wellbeing — programa voltado à saúde mental com atendimentos gratuitos com psicólogos.

“No hotel, contamos com 280 colaboradores. No ano passado, tivemos 10 pessoas acometidas por afastamentos por problemas de saúde mental. Em linhas gerais, o feedback da equipe é positivo quando falamos de bem-estar. Percebemos que os profissionais estão procurando mais ajuda, o que mostra que há certa desmistificação sobre o tema”, diz Silva.

No Grupo Wish, que possui 1,5 mil colaboradores, os laudos sobre os riscos psicossociais estão em fase de desenvolvimento ao lado de uma assessoria especializada. Enquanto as adaptações não são concluídas, a rede hoteleira busca aprimorar as iniciativas que já estão disponíveis.

“O foco desde o início é disponibilizar terapia para os colaboradores. Contamos com psicólogo online via aplicativo com sessões semanais. Também oferecemos consultas com nutricionistas e personal trainer, além de descontos em academias. O Grupo Wish faz um investimento generoso em seguro saúde e seguro de vida”, pontua Natalia.

Para a diretora, ouvir os colaboradores é essencial no processo de transformação da cultura organizacional e desenvolvimento dos programas de saúde mental. “Não toleramos nenhum tipo de assédio e contamos com times empáticos. Sustentamos essa cultura em nossas lideranças, com treinamentos sobre comportamentos não aceitos”, continua Natalia.

Visando promover o bem-estar dos times, a rede hoteleira está em fase de estudos de novas escalas de trabalho em todas as áreas. Para a diretora, é o momento de experimentar e avaliar processos. “Temos um projeto-piloto de escala 5×2 para entender se funciona e como a mão de obra se encaixa nesse modelo”, revela a executiva.

Escuta ativa

Com 2,1 mil “emocionadores”, o Grupo Tauá de Hotéis também desenvolve uma série de programas voltados à saúde mental. Viviane Magalhães, diretora de Talento, Cultura & Felicidade, explica que o cuidado com o tema vem sendo reforçado na rede mineira desde o fim da pandemia.

“Antes mesmo da mudança da NR-1, o Tauá já havia adotado alguns programas neste sentido, com foco no acolhimento psicológico, com psicólogos dentro dos hotéis para atendimento aos colaboradores. Observamos um aumento de 40% na procura por esse tipo de serviço de 2023 para 2024, o que mostra que as pessoas estão se preocupando cada vez mais com a saúde mental”, avalia Viviane.

Quanto à NR-1, o Grupo Tauá deve promover mudanças internas a partir de abril para a avaliação de riscos psicossociais. A diretora da rede vê a alteração com bons olhos, dando mais ênfase aos temas relacionados à saúde mental no ambiente de trabalho. “Vamos intensificar nossas ações e avaliar o que será feito”.

A empresa realiza treinamentos com lideranças com foco em inteligência emocional. Atualmente, a taxa de turnover da rede gira em torno de 30%, podendo variar de hotel para hotel. “Temos vários canais de escuta, que chamamos de ‘felicitômetro’. Assim, conseguimos medir o nível de felicidade das equipes, clima organizacional e pesquisas para elogios e reclamações”, explica Viviane.

A rede mineira vem atuando em suas vertentes principais: desenvolvimento de lideranças e escalas. Viviane revela que a empresa entende a necessidade de mudanças no sistema 6×1, que está em fase de discussões internas. O Tauá também está testando outras iniciativas, como um hotelzinho para filhos de colaboradores.

“Testamos no Grande Hotel Araxá, que funcionou durante o mês de janeiro. O resultado foi incrível e muito elogiado. Também contamos com benefícios para as academias e oferecemos casas de férias para nossos colaboradores sem custo”, pontua Viviane.

Investir em qualidade de vida é um meio eficaz de mitigar riscos psicossociais e engajar os profissionais, segundo Maria Cristina. “Quanto mais energia e atenção a empresa investir em pessoas, maior será o seu retorno em todos os aspectos, financeiros e não financeiros. Creio que a hotelaria precisa rever especialmente a necessidade de contar com a disponibilidade integral dos colaboradores e implementar jornadas de trabalho mais flexíveis”, avalia.

Fiscalização

A fiscalização será realizada de forma planejada e por meio de denúncias encaminhadas ao MTE. Setores com alta incidência de adoecimento mental, como teleatendimento, bancos e estabelecimentos de saúde, serão prioritários.

Durante as inspeções, os auditores-fiscais verificarão aspectos relacionados à organização do trabalho, buscarão dados de afastamentos por doenças, como ansiedade e depressão, entrevistando trabalhadores e analisando documentos para identificar possíveis situações de risco psicossocial.

A Norma não obriga a contratação de psicólogos ou outros profissionais especializados como funcionários fixos. No entanto, empresas podem contratar especialistas como consultores para auxiliar na identificação e avaliação de riscos psicossociais, especialmente em casos mais complexos.

(*) Crédito da capa: Unsplash

(**) Crédito das fotos: Divulgação