Ana Lúcia Tassinari, governanta Executiva do InterContinental São Paulo
(fotos: Giulia Ebohon)
Sob a mesa, uma caneta inclinada levemente para a esquerda. A cama, bem feita, acomoda travesseiros de penas e plumas. Uma cortina entreaberta exibe a vista da janela, que apresenta em uma de suas extremidades um abajur endireitado. Esse poderia ser o retrato de uma quarto de hotel pronto para receber seu hóspede. E se assim fosse, a organização se aplicaria rigorosamente nas demais acomodações.
A imagem construída sobre a experiência em um empreendimento muito está ligada com um sentimento de encantamento, no sentido de que tudo ocorre de maneira concomitante em função do hóspede que, de maneira passiva, vislumbra desejos serem atendidos em questão de poucos minutos. Essa característica, no entanto, pouco tem a ver com mágica, sendo desempenhada por meio de muitas mãos.
Portanto, dando alguns passos para trás, precedendo a recepção de um visitante, o que é um hotel antes de estar de fato pronto? O que é um quarto antes da chegada de seu hóspede? Que processo formula a ideia de conforto e cuidado conferido a um meio de hospedagem? Ana Lúcia Tassinari, governanta Executiva do InterContinental São Paulo, salienta que como no corpo humano, todas as áreas de uma unidade devem funcionar bem e em harmonia para que o encantamento, palpável ao hóspede, seja possível.
Formada em Turismo pela Anhembi Morumbi, e com pós-graduação em Administração Hoteleira pelo Senac, Ana Lúcia possui 26 anos de experiência trabalhando em hotéis, sendo que 19 foram traçados dentro da rede IHG (InterContinental Hotels Group). Para a profissional o serviço desempenhado pela governança é inerente à construção do encantamento de um empreendimento, uma vez que, sob esse departamento, está a responsabilidade de administrar os bastidores da hospedagem, como a organização dos quartos, a lavanderia e a higienização de áreas públicas.
Além disso, é nesse âmbito que recai sobre uma equipe de, no caso do InterContinental São Paulo, cinquenta pessoas, o desafio de antecipar os anseios de um hóspede para que a imprevisibilidade também defina a singularidade de se hospedar na unidade.
“Uma das coisas que eu sempre considerei importante para os clientes, é que você precisa sempre encantá-los e surpreendê-los para que não se esqueçam da experiência que tiveram. Então é uma das coisas que tentamos fazer no Inter, fazer com que eles sejam surpreendidos para que seja uma experiência marcante”, aponta.
Familiarizada com os bastidores, neste ano Ana Lúcia foi o foco das câmeras durante o Prêmio VIHP – Very Important Hotel Professional, ao ser reconhecida pelo trabalho desenvolvido no InterContinental São Paulo. Surpreendida com a colocação, a profissional segue ainda mais motivada a criar e preservar o encantamento do hotel.
*Por Giulia Ebohon
Hôtelier News: Como o curso de hotelaria ainda não despontava entre as opções de cursos universitários, você optou por fazer Turismo. Como, então, essa área de hotéis, na qual você se especializou mais tarde, foi surgindo e se desenvolvendo na sua carreira?
Ana Lúcia Tassinari: Eu me formei em 1989, em Turismo muito certa do que eu queria, isso porque uma das grandes coisas que eu aproveitei, e que eu sempre indico, é fazer estágio. Eu fiz estágios em todas as áreas, porque eu não tinha certeza do que eu queria, então eu pensei 'deixa eu começar a estagiar para descobrir o que eu não gosto'.
Eu entrei muito nova na faculdade, então eu nem sabia o que eu queria ser quando crescer. Durante a faculdade, eu fiz vários estágios, eu fiz em agência de viagem, em aeroporto, eu fiz em hotel. Os estágios fizeram com que eu sentisse um pouco no que eu poderia trabalhar.
Em 1988 eu resolvi aproveitar uma oportunidade de estágio, em que eles estavam chamando pessoas para trabalhar durante o verão em Florianópolis, no Ponta das Canas Praia Hotel, aceitei na hora. Então, a primeira vez que eu conheci e trabalhei em um hotel no dia a dia foi em Florianópolis. Durante um verão eu fiz de tudo um pouco. Quando a temporada acabou, eu voltei para São Paulo terminar a faculdade, depois que me formei eu entrei em contato com eles de novo e me candidatei pra ir.
Uma das chefes me ligou para perguntar se eu não queria voltar. Ai eu fui, para trabalhar o ano inteiro no hotel Diplomata, porque o Ponta das Canas só abria na temporada. Fiquei lá por sete anos, em 1996 eu decidi voltar para São Paulo, foi uma decisão familiar, pessoal, eu precisava estar com minha família. Mas também uma decisão de crescimento profissional, foi o momento que eu pensei sobre o que eu queria da minha carreira. Naquele momento eu não via em Florianópolis uma possibilidade de crescimento, ainda era uma região provinciana, sem grandes redes de hotéis, eram todos familiares.
HN: Como ocorreu sua entrada no IHG?
Ana Lúcia: Meus pais me deram suporte de novo e eu voltei para São Paulo. Me matriculei no curso de pós-graduação em Administração Hoteleira no Senac. Foi legal fazer uma pós-graduação depois de já ter trabalhado na área durante uns bons anos. Eu tive a vivência profissional antes de fazer a pós. As pessoas as vezes fazem a pós para ter certeza do que querem eu já sabia que eu queria hotelaria.
Nas primeiras semanas de aula, uma das alunas estava envolvida na abertura do InterContinental São Paulo, isso lá em 1996. Erra um ano importante na hotelaria no Brasil, as grandes redes começaram a abrir os hotéis aqui, e o Inter estava entre eles. Fui trabalhar como telefonista. Em Florianópolis eu já tinha até sido chefe de recepção, mas eu precisava entrar no hotel em outro patamar. Em seis meses me ofereceram a oportunidade de ir para a área de governança, como supervisora.
Eu fui fazer a entrevista com a dona Lídia Mazoni, que era a governanta da rede IHG. Ela era uma senhora italiana muito durona, mas de um conhecimento absurdo e que foi minha grande escola. Para mim, ela foi a pessoa que fez com que eu me encantasse com a governança, eu queria seguir tudo o que ela fazia. A Dona Lídia me ensinou o beabá, o que é o encantamento e o quanto é importante você cuidar de quem cuida dos seus clientes.
Em 2001, eu tive a oportunidade de sair de São Paulo e ir para o Rio de Janeiro, no Intercontinental de lá, como governanta Executiva. Eu nunca tinha ido para o Rio, foi muito interessante, a Dona Lídia me deu todo o suporte. Eu recebi um hotel completamente diferente do de São Paulo. No Rio era um empreendimento de 25 anos, com 120 funcionários e com 430 quartos, então foi um choque.
Eu fiquei lá durante quatro anos e, novamente, pela primeira vez, me deram a oportunidade de fazer uma abertura de hotel, o Holiday Inn Parque Anhembi, em São Paulo. Um hotel com 780 apartamentos. Fazer a abertura é o início de tudo, contratar todos os funcionários, regular as comprar, aí você entende a importância de trabalhar em equipe. Ou eu tinha uma equipe muito profissional, eu não daria conta.
Por dois anos eu atuei no Anhembi, até que me pediram para voltar para o Rio, no final de 2005. Em 2006 a gente ia reformar quatro andares do hotel, e ,e chamaram pela minha experiência de receber obra.
Em 2008 eu recebi a oferta de fazer outra abertura. Foi minha oportunidade de sair do Brasil e encaminhar a abertura do InterContinental em Melbourne, na Austrália. Aí foi delicado, porque era uma realidade bem diferente. Eu já tinha 12 anos de experiência nessa época, estava completando 40 anos, já tinha conquistado maturidade.
Tomei a decisão de voltar para o Brasil. Foi uma decisão pessoal, por causa da minha família, era um distancia muito grande. Você não participa de coisas boas nem ruins, eu não tenho esse desapego. A experiência foi muito válida.
Eu voltei para o InterContinental São Paulo no final de 2009. Mesma posição mas outra Ana. Eu vi muita coisa, abri hotéis de outras bandeiras, fui para Austrália, eu me via como outra profissional. Eu gosto de ser governanta, eu não preciso mudar de cargo para crescer. Foram 19 anos de IHG, mas não fiquei parada.
HN: Grande parte de seu trajetória profissional foi realizada no setor de governança. Como esse departamento é desenvolvido e qual é a importância dele dentro do hotel?
Ana Lúcia: Por mais que o trabalho da governança ocorra completamente nos bastidores do hotel, o hóspede sempre utiliza o serviço que é desenvolvido nesse setor. Ele pode até não comer aqui dentro, ele pode não usar todas as áreas do empreendimento, mas a hospedagem é basicamente o apartamento, então eu vou estar sempre envolvida com essa parte.
Hoje eu sou responsável por cuidar de toda essa área de governança, que contempla todas as arrumadeiras do hotel que prestam serviços nos quartos; toda a área de limpeza pública, que seria o espaço de eventos, lobby, bastidores dos escritórios e a lavanderia. Então todos esses funcionários, estamos falando de mais de cinquenta, acabam sendo subordinados a mim como governanta Executiva.
E qual é o principal serviço? É oferecer sempre muita qualidade na limpeza e na apresentação de todo o hotel. A primeira regra principal desse setor é: não trabalhamos sozinhos. Ou a gente trabalha em equipe ou nada acontece. Por exemplo, eu vou entrar para arrumar um apartamento, se eu não tiver a roupa que a lavanderia entregou impecável, eu não consigo trocar a roupa de cama do hóspede. Tudo tem que estar funcionando perfeitamente.
Temos as arrumadeiras limpando e identificando se o apartamento está funcionando direitinho, se tiver uma lampada queimada ela vai avisar a manutenção para que eles troquem. Se eu não tenho quem avisa como que a manutenção faz o trabalho dela? Então, é uma equipe.
HN: De que maneira se torna fundamental a harmonia entre os diversos colaboradores que compõe a equipe sob sua responsabilidade?
Ana Lúcia: Vou te dar um exemplo, eu preciso que o cliente não veja a lâmpada queimada. Não é o hóspede que tem que me avisar, eu preciso que antes as minhas camareiras e supervisoras, que checam o serviço das camareiras, identifiquem essas dificuldades.
Aqui no hotel temos 195 apartamentos. Então temos todo um trabalho de estar diariamente higienizando e fazendo toda a construção de encantamento para que o cliente entre e receba o melhor. Então todo esse é um trabalho que temos que estar coordenando, e isso acontece com a camareira executando e a supervisora fazendo a supervisão para poder liberar o apartamento. Sempre terão dois olhos que vão observar melhor.
HN: Grandes redes de hotéis já possuem padrões de atendimentos e de serviços que condizem com a marca do empreendimento. No caso de hotéis familiares isso não aparenta ser tão regrado. Você sente que esses padrões de alguma forma comprometem os serviços personalizados?
Ana Lúcia: Eu acho que é muito mais facil a organização quando você trabalha para um rede que já possui um padrão de serviço, porque você meio que recebe um manual. Mas esse personalizar, esse encantamento, você vai fazer independente dos padrões, não existe engessamento, eu tenho flexibilidade de criar ferramentas que eu posso usar para encantar meu cliente.
Por exemplo, se eu perceber que você não gosta daquele travesseiro eu vou trocá-lo. Estamos em uma rede internacional, trabalhamos em cima de padrões o tempo todo. O cliente que compra um InterContinental sabe o que ele está comprando, ele chega aqui sabendo o produto que ele vai receber e essa expectativa não pode deixar a desejar.
Em um hotel familiar, onde o dono está ali tomando decisões, também vão existir regras ou padrões que ele define. Nesse caso, se ele definiu, eu vou ter que obedecer. Eu até considero, as vezes, mais engessado essa categoria porque se o dono decide que não vai ter alguma coisa, eu não tenho com quem questionar.
Em uma rede, como a nossa, somos escutados, meu gerente Geral leva para outros executivos nossas demandas. Eu acho que são dois mundos, eu respeito hotéis familiares, mas eu me identifico profissionalmente com grandes redes, talvez por eu ser regrada, seguir tão corretamente os padrões. Eu sou mesmo disciplinada, e isso faz com que as coisas sejam mais fáceis para mim.
HN: Você passou por uma série de empreendimentos durante sua carreira. De que maneira o perfil do hóspede, seja de lazer ou negócios, influencia nos serviços oferecidos pelo hotel?
Ana Lúcia: Bom, vou te dar um exemplo. Hoje nós não vivemos sem a internet. Agora, uma coisa é estar de férias e eu precisar da internet para postar fotos e para usar Facebook, esse é meu cliente de lazer. A outra coisa é o homem de negócios, ele precisa estar conectado para fechar grandes negócios e a viagem dele depende disso. A exigência que ele vai ter é completamente diferente.
Em São Paulo, apesar de ter clientes de lazer que chegam, geralmente de sexta-feira e passam o final de semana, a grande maioria vem a negócios. Nesse caso ele precisa que as coisas funcionem, porque a viagem dele depende disso. Ele não pode de maneira alguma não ter internet, ele tem que ter acesso a todas as facilidades do hotel.
HN: Tomando sua experiência em governança como base, o que você considera fundamental para atuar nessa área?
Ana Lúcia: Planejamento. Eu não posso trabalhar sem planejamento. Eu tenho a ocupação do hotel, o número de saídas e de chegadas, sempre muito à frente do que está acontecendo para que eu tenha a quantidade correta de pessoas para fazer o serviço. Se eu me planejo eu consigo oferecer aquele serviço.
A apresentação é o mínimo de um hotel cinco estrelas. Eu sempre chego às 8h na empresa, já teve fases em que eu entrei muito mais cedo, porque se há necessidade de conversar com as camareiras eu chego mais cedo. Tem dias que terminam as 18h, outros que não. Porque o hotel não fecha, então está acontecendo um evento muito grande, é minha responsabilidade acompanhar tudo.
A governança é feita em cima de três pilares: material humano – quantidade correta de pessoas, uma camareira não vai fazer 20 quartos, senão você não vai ter qualidade. Equipamento – tenho que ter coisas que funcionam – e material para trabalhar. Com esses pilares a camareira vai ser eficiente.
É meu trabalho comprar esse material, contratar pessoas, comprar o equipamento. Não adianta eu chegar em um hotel de 130 apartamentos e ter três camareiras. A hotelaria exige essa pré-disposição. Quem escolhe essa área na vida precisa entender isso.
HN: Como a personalização de um serviço se relaciona com a disposição do colaboradores?
Ana Lúcia: Temos um treinamento que fazemos com as arrumadeiras que chama "Observe o lixo do seu cliente". Então, se eu tenho um cliente que comeu todos os dias um Sonho de Valsa, a gente começa a fazer a abertura de cama dele com um Sonho de Valsa. Porque, assim eu incentivo elas a observarem os hábitos do seu cliente.
Nossos funcionários possuem muita liberdade de tomar iniciativa. Se minha arrumadeira vai arrumar seu quarto e percebe que você deixou no chão o edredom de pluma e pena, ela não vai colocar de novo. De repente a gente entra em contato com você para saber se você dormiu bem e, se você quiser, substituímos por outra coisa.
O apartamento diz muito sobre o hóspede. Temos acesso a intimidade da pessoa e também por isso temos que ser muito discretos. Conversamos muito com os colaboradores sobre isso. O fato de eu saber que tal hóspede gosta de Sonho de Valsa, não significa que eu posso divulgar que ele gosta de Sonho de Valsa, é uma linha muito tênue que temos que deixar bem clara a separação.
NH: A relação com os colaboradores parece estar estritamente ligada com a qualidade do serviço oferecido. Qual é a importância de se manter um bom relacionamento com eles?
Ana Lúcia: Vou te dar um exemplo. Eu estou na Alameda Santos, tenho hotéis como o Reinassance, Tivoli e o InterContinental. O que faz um hóspede querer ficar aqui e não no Renaissance? O que faz ele querer ficar no Tivoli e não no InterContinental? Todos vão ter a melhor cama, o melhor serviço, assim se espera porque são hotéis de grandes redes. Eu acredito muito que a escolha é determinada pelo serviço.
O serviço é lidar com pessoas, é ter todos os meus funcionários comprometidos felizes. Eu trabalho muito para isso. Meu foco é deixar meus funcionários o tempo todo felizes aqui dentro, eles precisam saber que eu cuido deles. Quando você escolhe hotelaria você sabe que vai trabalhar aos sábados, domingos e feriados, não adianta me pedir para folgar todo o sábado e domingo porque você escolheu hotelaria, eu não vou conseguir dar. Mas é mais do que necessário a motivação, respeito e, principalmente, valorização.
Eu preciso estar sempre treinando, reciclando diversas formas de treinamentos, para que os colaboradores sejam sempre estimulados a ficarem atentos ao que fazem, para reconhecer a importância do trabalho que realizam. Porque se você entre em uma mesmice, você liga o automático e já não repara no que está fazendo.
O treinamento prepara para lidar com as falhas. Porque tem falhas, algo só não dá errado quando você não está fazendo nada, então a questão é também pensar em maneira de lidar com as falhas, de se desculpar com o hóspede.
O IHG é uma empresa muito legal, ela investe em tudo, ela banca para você estudar inglês, então ela quer que todo mundo cresça. Eu tenho algumas camareiras que estão falando inglês, estão fazendo faculdade, e a gente incentiva mesmo.
HN: Como você acredita que todo o investimento que você fez em si mesma, seja em cursos ou até mesmo mudando sua vida para destinos diferentes, retorna para você?
Ana Lúcia: Eu faria tudo de novo! Até erraria o que eu errei. Acho que a gente precisa experimentar, vivenciar para depois escolher, senão eu ficaria muito frustrada comigo mesma no "se". Hoje eu tenho uma realização pessoal e profissional. O hotel me deu condições de realizar meus sonhos pessoais. Me sinto realizada tendo reconhecimento. Meu gerente geral mostrando que o meu bom trabalho influencia nos bos resultados dele é maravilhoso.
Serviço
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