Extrovertida, Melissa foi efetivada no Grand Hyatt São Paulo em 2014
Quando Carmem e Nilton eram vivos, os Carriconde costumavam se reunir com frequência. Quase todo final de semana o movimento era grande na residência dos dois patriarcas. Com o falecimento deles, contudo, as coisas ficaram diferentes, as reuniões familiares rarearam. Uma dos 12 netos da dupla, Melissa tem ótimas lembranças dessa época. Gostava de encontrar os primos, das piadas dos tios e, claro, da presença dos avós. Ela sabe perfeitamente que nada é para sempre, que as coisas mudam – e rápido. Vive isso na pele, no corpo.
Melissa tem 22 anos e passa atualmente pela transformação mais importante da sua curta vida. Nascida como Matheus, no corpo de um menino, está em processo de transição de gênero. Decidida, quer fazer uma cirurgia para colocar seios. Corajosa, não tem receio de se expor, mesmo nesse mundo lotado de preconceito vindo de todas as direções. No dia 22 de dezembro de 2018, por exemplo, compartilhou em seu perfil de uma rede social um link para a campanha virtual criada por amigos. O objetivo? Arrecadar recursos para sua tão desejada operação.
Extrovertida e bastante comunicativa, Melissa parece ser daquele tipo de pessoa que faz amizade onde quer que vá. Portanto, o fato de um grupo de pessoas se juntar para ajudá-la a realizar um dos seus sonhos não é surpreendente. Pelo contrário, faz bastante sentido. Aliás, se você quiser contribuir, o link para a campanha é esse aqui: https://bit.ly/2RsmIj1.
Com o perfil de Melissa, o Hotelier News encerra a série de reportagens sobre transgêneros na hotelaria. Ainda dando os primeiros passos no setor, ela e Oliver Castiel Severo trabalham juntos no Grand Hyatt São Paulo. Não são propriamente grandes amigos, mas atualmente compartilham experiências muito parecidas. Mesmo com essa “distância”, um admira a outra; uma sabe que pode encontrar amparo no outro.
Melissa: origens
Nascida na região de Santa Cruz, em São Paulo, Melissa é filha do baiano Ernandes e da gaúcha Rafaella. Segundo a filha do casal, os dois se conheceram no único lugar possível: dentro de um shopping center. “Meu pai sempre trabalhou no varejo, assim como minha mãe. Hoje, ele tem uma loja de calçados no Sacomã e ela continua trabalhando em shoppings, numa unidade da Hering do Shopping Santa Cruz”, explica.
Quando tinha seis anos seus pais se divorciaram. Melissa passou a maior parte da vida com a mãe, com quem mora atualmente ao lado do padrasto José Antonio e da irmã Giovanna, de 17 anos. “Moramos em Interlagos, a mais ou menos 30 minutos do trabalho”. Ela tem outra irmã – mais velha – chamada Marina, que tem duas filhas: Maria Eduarda e Alice. “Giovanna está terminando os estudos agora, enquanto Marina trabalha numa imobiliária”, conta.
Melissa, na segunda fileira, de camisa preta, antes da transição
Os churrascos feitos por Nilton formam mesmo algumas das principais lembranças de Melissa da infância. “Meu avô gostava de casa cheia, de fazer comida para a família inteira. Ele brincava com os netos dizendo que os filhos já estavam criados e que, por isso, era hora de comprar um trailer para viajar só com a gente”, relembra. “Sinto falta dessas reuniões de família. Ele não era meu avô de sangue, mas era muito presente. Então, sempre foi meu avô de coração.”
Falas como essa mostram o lado família de Melissa, que tem uma relação muito próxima com a mãe. “Ela é minha grande parceria nessa vida”, comenta. “Já meu pai não é muito presente”, comenta, inicialmente justificando essa situação à falta de tempo. “Procuramos conversar em meio a essa minha vida corrida na hotelaria. Posso dizer que rola um diálogo entre nós, mas não muito”, acrescenta.
Com o desenrolar da conversa, foi mais fácil entender o papel do pai na vida de Melissa. Hoje, por exemplo, eles não se encontram pessoalmente há três anos. “Há uma lacuna entre nós. Ele me manda mensagens nas datas mais importantes, e para por aí”, admite, dando a entender que, de fato, sua opção sexual quando jovem foi a causa do afastamento. “Quando revelei para ele que era gay, ainda no ensino médio, ele foi muito resistente. Hoje, posso dizer que não temos uma relação saudável como deve ser entre pais e filhos”, completa.
Segundo ela, a mãe sempre sacou e entendeu sua orientação sexual quando mais jovem. “Mãe sempre sabe, não é verdade?”, diz. “Desde pequena gostava de coisas de meninas, sempre fui muito delicada. Sentia desde criança algo diferente em mim. Pegava os saltos da minha mãe, colocava uma toalha na cabeça e andava pela casa. Então, acho que a Melissa sempre esteve aqui dentro de mim, só nunca soube identificar isso e, mais ainda, não sabia que havia um nome para isso”, avalia.
A transição
Dos 15 aos 20 anos, Melissa foi homossexual. Como muitos gays, teve também experiências heterossexuais quando adolescente. “Rapidamente vi que não era o que gostava e fui ter experiências homossexuais, o que também não rolava. Tive várias relações, mas só funcionava se fossem com gays bem másculos. Na realidade, o que sempre me atraiu foram homens heteros”, revela Melissa, destacando que essa preferência gerou bastante sofrimento. “Acabava me apegando a uma pessoa que não podia me dar o que queria”, completa.
Em 2017, Melissa passou ter sessões de terapia oferecidas pelo Grand Hyatt São Paulo. Nas conversas com a psicóloga, começou a abordar essa questão. “Expliquei para ela que tinhas esses bloqueios em me relacionar com homossexuais e que sempre fui muito delicada. Um dia ela me falou sobre transgêneros e pediu para pesquisar sobre o assunto”, conta.
No hotel, ganhou mais do que amigos; recebeu acolhimento
Melissa relembra que, assim que saiu da sessão, começou a vasculhar a internet para saber mais sobre o tema. “Acabei encontrando um vídeo que parecia contar a minha história pessoal. Identifiquei-me imediatamente e tive certeza de que era exatamente aquilo que estava acontecendo comigo. Era como se o quebra-cabeça da minha vida estivesse incompleto e aquele vídeo mostrava as peças que faltavam”, relembra. “Passei a ter certeza do que caminho a seguir”, completa.
Embora tenha entendido tudo que acontecia, Melissa ganhou uma preocupação. Como seria dali em diante? Aceitar-se, entender quem era e “sair do armário” perante a família, amigos e companheiros de trabalho foi uma tarefa relativamente tranquila até ali. Agora, como explicar ao seu empregador que desejava mudar de gênero? “Afinal, fui contratada como Matheus, né?”, acrescenta.
Sua preocupação, na verdade, inexistia. No Grand Hyatt São Paulo ganhou todo apoio que precisava. Deixou os cabelos crescerem, passou a usar maquiagem, escolheu um novo nome para si e logo depois ganhou um botton de identificação com ele. Mudou de uniformes e passou a ter direito de frequentar o vestiário feminino. Em suma, foi aceito como gostaria ser vista. Percebeu que, no trabalho, o preconceito passava muito longe. “Tudo isso me ajudou a ganhar segurança para mostrar quem realmente era”, diz.
Para o futuro, pensa em retomar a faculdade, conhecer outras áreas do hotel e continuar sonhando. “Quero trabalhar no Hyatt de Nova York”, revela. A depender da sua força de vontade, da compreensão da família, da força dos amigos e do amparo do seu empregador, a Estátua da Liberdade é logo ali. Você duvida da estrela de Melissa?
(*) Crédito da capa e da primeira foto: Filip Calixto/Hotelier News
(**) Crédito da imagem: reprodução da internet
(***) Crédito das demais fotos: arquivo pessoal