Olhar o copo meio cheio ou meio vazio é uma questão de perspectiva que serve para diversas situações. Quando a pandemia explodiu, praticamente todos os setores da economia precisaram fazer adaptações. Além do uso de máscaras, arrisco dizer que o trabalho remoto talvez tenha sido uma das principais transformações sociais observadas de 2020 pra cá. Dois anos e três doses de vacina depois, o mundo volta a viver uma realidade mais próxima à normalidade, e o que muitos acreditavam ser apenas medidas paliativas estão se mostrando mais permanentes do que o esperado.
Uma pesquisa desenvolvida pela Microsoft sobre tendências de trabalho aponta que 58% dos brasileiros consideram mudar para o modelo híbrido ou totalmente remoto ao longo de 2022. O estudo, que conta com dados de 31 mil pessoas em 31 países, mostra que a visão dos profissionais sobre os moldes tradicionais mudou ao longo da pandemia.
Ao redor do globo, 57% dos funcionários que atuam em diversas indústrias têm a intenção de mudar para o trabalho híbrido, enquanto 51% daqueles que já atuam de forma híbrida expressam desejo de mudar para o regime remoto.
Para 53% dos profissionais entrevistados, o bem-estar e a saúde passaram a ser pontos ainda mais importantes do que o trabalho. No Brasil, especialmente, a priorização destes dois fatores foi uma das maiores, com um índice de 71% dos participantes da pesquisa apontando maior preocupação com ambos do que em relação ao período anterior à pandemia.
O levantamento Redefinindo os modelos de trabalho na América Latina, realizado pela WeWork e HSM, indica que 76% dos brasileiros consideram o modelo híbrido o cenário ideal. Em países latino-americanos, o cenário é semelhante, com 81% dos entrevistados preferindo intercalar entre o trabalho remoto e o escritório.
Para se ter uma ideia do peso da mudança, o governo federal apresentou hoje (25) duas MPs (Medidas Provisórias) que regulamentam o trabalho remoto. A proposta é promover alterações no auxílio-alimentação, antecipação de férias e benefícios. Entre as medidas, o texto visa regularizar a modalidade, que poderá ser feita em modelo híbrido e contratação com controle de jornada ou por produção.
A escalada iminente do home office ligou um sinal de alerta no turismo, que viu suas demandas corporativas evaporarem nos últimos 24 meses e que, possivelmente, nunca retornarão aos moldes pré-pandêmicos. Entender o cenário desta perspectiva é olhar o copo meio vazio, pois à medida que o trabalho remoto reduz as viagens de negócios, ele abre espaço para o bleisure, entre outras oportunidades de mercado.
Uma faca de dois gumes
Para Mariana Aldrigui, presidente do Conselho de Turismo da FecomercioSP, a ampla adesão dos novos moldes de trabalho está atrelada a diferentes fatores. Ela destaca a qualidade de vida dos funcionários, que muitas vezes gastam horas no transporte público das grandes cidades, além da maior proximidade com a família. Ao mesmo tempo, a profissional salienta que a transformação vem de encontro com caminhos a serem explorados por players do setor.
“Os hotéis, por exemplo, podem investir em parcerias com escritórios satélites e espaços de trabalho colaborativo, servindo de hub para empresas. Em contrapartida, as companhias têm a opção de direcionar os gastos com escritório para reuniões mensais, incentivos e integrações com as equipes — o que fortaleceria a hotelaria e o setor de eventos”, avalia.
Importantes executivos do segmento de hospedagens, como Sebástien Bazin, CEO global da Accor, já entenderam que as demandas corporativas, principalmente as internacionais, serão permanentemente afetadas. O líder da rede francesa espera perder de 20% a 25% desse nicho de hóspedes, fruto da pandemia e agravado com os conflitos da Ucrânia.
Apesar do cenário aparentemente pessimista, Mariana lê o panorama com otimismo, podendo gerar uma lei de compensação para todos os elos da cadeia turística. “Sempre vai depender do ponto de vista observado. Enquanto uma categoria de hospedagem perde, por exemplo, outra ganha. Hotéis de luxo podem sentir mais a mudança, visto que a maior parte da demanda são de empresas, já estamos falando de empreendimentos com tíquete médio mais elevado. Se olharmos o volume de pessoas, é provável que outros nichos compensem”.
Vale lembrar que outras áreas do turismo estão no mesmo barco, como é o caso do setor aéreo, que vive um momento complexo com a queda do dólar, alta dos combustíveis e reorganizações de rotas.
Repensando espaços
Ainda que o trabalho remoto não seja nenhuma novidade gerada pela pandemia, o setor hoteleiro segue em marcha lenta no que diz respeito a repensar espaços e rentabilizar este segmento de clientes. “Tem pouca gente fazendo isso. A hotelaria precisa pensar para além do hóspede. É possível criar ambientes de coworking, cobrar taxas de acesso a internet, desenvolver cafés com mesas de trabalho, enfim, mudar a filosofia de ambientes como o lobby”, pontua Mariana.
Neste quesito, o Selina parecia prever o futuro. Muito antes da descoberta do coronavírus, a rede já tinha o nomadismo digital em seu DNA. Para Flávia Lorenzetti, diretora executiva da marca para o Brasil, a adesão em massa do trabalho remoto é o sonho de consumo da cadeia panamenha.
“Essa mudança caminharia junto com a nossa retomada. Os hotéis precisam desenvolver melhores condições para atender a esse público. O corporativo pode cair, mas muitas pessoas vão tirar do papel aquela viagem dos sonhos sabendo que vão poder entregar seu trabalho, mesmo longe de casa. Só é necessário criar espaços e oferecer uma boa internet que atenda às demandas dos clientes”, explica Flávia.
A executiva pontua que viagens pautadas pelo bleisure podem elevar as ocupações hoteleiras em períodos de baixa, o que solucionaria a questão da sazonalidade. “Uma pessoa que vai trabalhar não procura a alta temporada, mas busca se conectar ao destino”, complementa.
Os novos modelos de trabalho ainda atuam como tendência, mas devem enfrentar algumas barreiras até se tornarem uma realidade de fato. Uma delas é o conservadorismo de muitas empresas que ainda enxergam os sistemas híbrido e remoto com maus olhos. Mas se depender das novas gerações, os moldes tradicionais estão com os dias contados.
“Estamos vivendo uma virada de geração. Os mais conversadores não entendem que dar a opção aos colaboradores é sinônimo de produtividade. É muito benéfico trabalhar de um lugar que você gosta. Muitas pessoas precisam adotar uma rotina e ter disciplina, mas estamos em fase de adaptação”, finaliza Flávia.
(*) Crédito da capa: VisionPics/Pixabay
(**) Crédito das fotos: Divulgação