A hotelaria é uma das atividades mais antigas da nossa civilização, com registros que remontam a milhares de anos antes de Cristo. Na Mesopotâmia, por exemplo,  surgiram os primeiros estabelecimentos dedicados a abrigar viajantes em troca de pagamento. Na Roma Antiga, hospedarias proliferaram ao longo das rotas comerciais, impulsionando um sistema organizado para abrigar quem cruzava o vasto império. Hoje, a indústria é muito mais complexa, envolve uma infinidade de  stakeholders e movimentando bilhões anualmente. Ou seja, ao longo do tempo, o mercado de hospitalidade acompanhou a evolução da humanidade, sempre se adaptando às demandas dos hóspedes, em um círculo virtuoso que nunca cessa. Esse dinamismo obriga o hoteleiro a estar sempre antenado às tendências do mundo, certo? Então, diante da aceleração da transformação digital na sociedade e das recentes mudanças do comportamento  do consumidor, qual o perfil ideal do profissional do setor? Que habilidades precisa ter? Quais competências são fundamentais neste momento de tantas transformações?

No dia 9 de novembro, é celebrado o Dia do Hoteleiro, que comemora a importância dos profissionais que atuam em um dos principais elos da cadeia produtiva do turismo. A data, que marcou a realização do I Congresso da ABIH Nacional, em 1936, continua como uma ocasião para enaltecer quem faz a hotelaria acontecer, assim como promover reflexões sobre os rumos do mercado. Por isso, o Hotelier News gosta de aproveitar o período para ouvir executivos do setor e debater assuntos estratégicos para o avanço dessa rica e dinâmica atividade. Com mudanças cada vez mais latentes no setor, como a agenda ESG, a retenção de talentos e a transformação digital, assim como a entrada de novas gerações no mercado de trabalho, como podemos definir o hoteleiro do século XXI?

Para Roland Bonadona, CEO da Bonadona Consulting, o Dia do Hoteleiro é uma data para celebrar não apenas gerentes gerais e o alto escalão, mas todos os profissionais que atuam no segmento, da camareira ao CEO. “Precisamos pensar em todos que atuam e participam da hotelaria. São profissionais que trabalham para que o hóspede tenha uma boa experiência”, diz.

Um olhar para o passado

O ex-CEO da Accor é um hoteleiro experiente, que acompanhou diferentes fases da indústria. O executivo lembra que, no passado, a maioria das propriedades era de administração familiar, com os proprietários, muitas vezes, atuando também no papel de gerente geral.

Roland Bonadona

Bonadona: um dia para celebrar todos no setor

“Eram empreendimentos de marca própria, com uma distribuição com poucos intermediários e processos comerciais mais analógicos, como correio, telefone e fax. O dono ou gerente entendiam de tudo um pouco. Era responsável pelas contratações, administração, financeiro, manutenção… A parte técnica não era tão complicada como atualmente”, avalia Bonadona.

No passado, as propriedades também eram mais enxutas, com menos quartos e alguns especialistas atuando ao lado do gerente geral. O proprietário estava mais próximo da operação e do contato com o cliente. “Antigamente, um hotel era apenas um lugar seguro para dormir e tomar banho. Um refúgio fora de casa. Esse modelo fugia em raras exceções de empreendimentos de luxo que ofereciam serviços mais rebuscados”, continua Bonadona.

À frente do Grand Hyatt São Paulo desde julho, Gabrielle Espindola acumula 20 anos de experiência em hotelaria. Em sua visão tanto como profissional, quanto como consumidora, as mudanças das necessidades básicas do cliente são latentes, o que impulsionou a movimentação do mercado como um todo.

“Hoje, a busca é mais por experiência do que por produto. Antes, a necessidade básica era dormir, comer e tomar banho. Com o passar do tempo, uma boa internet também se tornou uma necessidade básica. O consumidor procura além do básico e do desejável: ele quer ser surpreendido. E, para isso, é preciso conhecê-lo”, avalia Gabrielle.

Henrique Martins, diretor Regional de Desenvolvimento da Accor Brasil na divisão Premium, Midscale & Economy, o perfil do hoteleiro se modificou ao longo das últimas décadas, mas ele salienta que o setor é pautado em consistência e processos. “A hotelaria é uma maratona, em vez de uma prova de 100 metros rasos. Ou seja, a consistência e os processos são o que geram fidelidade ao consumidor, e não a novidade. Obviamente, isso é importante para atrair novos consumidores, mas até mesmo algo surpreendente precisa ser consistente para que o viajante retorne”, diz Martins.

Novos tempos, novas prioridades

Ainda assim, a premissa básica do bem receber é uma constante imutável no setor. Todavia, outras prioridades chegaram com o avanço tecnológico, as mudanças de comportamento do consumidor, a elevação da competitividade no mercado e o maior anseio por experiências. “Tenho a percepção de que o desejo de mudanças e inovações são fruto da comparação entre o mercado hoteleiro e outras atividades, como tecnologia e internet, e é importante cuidarmos para não nos frustrarmos”, pontua o diretor da Accor.

Para Martins, a prioridade número um do setor deve ser a atratividade de jovens para o segmento de serviços, além da simplificação de processos para receber profissionais mais experientes nas equipes. “Em resumo, a prioridade são as pessoas e a motivação das equipes. Entre as características, o fundamental é que os profissionais gostem de pessoas, além de respeitar e confiar em processos”, acrescenta.

Gabrielle Espíndola

“Necessidades básicas mudaram”, diz Gabrielle

CMO do São Pedro Thermas Resort, no interior paulista, Miguel Diniz acredita que a grande marca da virada do século é a reputação pública. Com os reviews online, a prestação de serviços ficou exposta. “Esse marco muda a forma de fazer gestão, mas acho que o hoteleiro do presente ou do futuro é um cara que domina essa reputação pública, que passa por prestar um excelente serviço”, avalia.

“Agora, é preciso ir um pouco além, fazendo acima do esperado, para transformar clientes em embaixadores da marca”, enfatiza Diniz. “A diferença está justamente em quem entendeu e quem não entendeu esse jogo, porque a reputação pública dita o quanto de valor que você consegue entregar”, acrescenta.

Em tempos de enxurradas de informações diárias, tanto do lado dos profissionais, quanto dos consumidores, estar limitado às tendências apenas do setor pode ser um tiro no pé. Para Diniz, o hoteleiro moderno precisa observar tudo ao seu redor.

“Estamos lidando com gente, então é preciso consumir conteúdo diverso, de diferentes segmentos. Passa por eu entender de música, cultura pop e lifestyle, por exemplo, porque é isso que molda o comportamento de um possível cliente. É preciso entender de pessoas, de comportamento, e é necessário estudar e observar tudo que está acontecendo, além do bom e velho benchmark”, pontua o CMO.

Renovar é a palavra-chave de Gabrielle, que lista duas qualidades essenciais para o hoteleiro do século XXI: adaptabilidade e agilidade. “O que inovamos hoje, amanhã já não será novidade. Vivemos desafios,todos os dias. Os problemas de hoje não são os mesmos de ontem. E temos que continuar testando, agindo rápido e oferecendo soluções, pois não temos todas as respostas”, acredita.

Salto tecnológico: hoteleiro x máquina

No passado, a administração era baseada em indicadores básicos, como ocupação e diária média. Com o salto tecnológico, as avaliações dos clientes também se tornaram dados importantes de gestão. Da porta para dentro, a satisfação dos colaboradores apontam para uma administração humanizada e alinhada com as demandas dos profissionais do mercado.

“Antes, tudo isso era um feeling. Não existiam dados. Esse é um efeito da tecnologia, que permite ao hoteleiro acompanhar tudo que acontece na sua propriedade. Seja na experiência do hóspede, na gestão de pessoas e no financeiro por meio de indicadores numéricos. É possível criar esse mapa tecnológico que ajuda o gestor a operar melhor”, diz Bonadona.

Quando chegou à Accor, nos anos 1990, a internet não fazia parte da vida cotidiana de grande parte da população. “Havia um computador na rede e o wi-fi não existia. Hoje, tudo mudou. A hotelaria foi invadida pela transformação digital, que está presente, principalmente, na distribuição, na comercialização e na operação”, complementa Bonadona, que enfatiza que as soluções chegaram para ajudar e, ao mesmo tempo, tornaram a gestão hoteleira mais complexa.

Dia do Hoteleiro - Miguel_Diniz

Diniz: é preciso estar atento a outros setores

Representante do setor de resorts, a Amarante conta com Fernando Santos como diretor de Operações. Com três unidades sob tutela, o executivo reforçou pontos da evolução da hotelaria desde que ingressou na área. Em sua visão, o crescimento do setor e do hoteleiro em si foi intenso, colocando ainda a pandemia da Covid-19 como advento que também moldou um profissional que, hoje, é mais adaptável, sustentável e tecnológico.

“É nítido o impacto da tecnologia, das novas demandas dos hóspedes e da ideia de sustentabilidade na nova hotelaria. Assim como é notório que a essência do serviço, a hospitalidade, vem sendo mantida e até aprimorada, ao longo desses anos”, cita. Em complemento, Santos traz o recorte da sustentabilidade como um assunto de relevância na atualidade.

O diretor não deixa as novidades em automação de fora ao citar a transformação do hoteleiro. Segundo ele, vir de um período com métodos mais mecânicos e rudimentares faz com que se entenda muito bem o quanto a hospitalidade melhorou no Brasil.

“Hoje, por exemplo, agilidade e eficiência praticamente mandam na implementação de qualquer processo, da reserva online ao check-in pelo celular e o atendimento digital do hóspede. Dessa forma, ter acompanhado os passos gradativos do segmento, principalmente dos anos 1990 em diante, com a chegada de redes internacionais, deixou qualquer profissional antenado preparado para as novidades por vir”, avalia Santos.

Diniz define a hotelaria como “muito atrasada” quando se trata de tecnologia, principalmente na relação tamanho versus investimento. “É uma relação difícil. O que deve acontecer é o varejo puxando a régua, o serviço como um todo levando o mercado para cima”, prevê.

“Quando a tecnologia começou a tomar conta da hotelaria aqui no Brasil, e estamos falando dos anos 1990 do século passado, muitos de nós ficamos com um pé atrás,  e talvez com o outro também. No entanto, analisando o setor em perspectiva, entendo que o setor é, atualmente, uma mistura do novo com o tradicional. Unimos bem, ao longo dos anos, as soluções tecnológicas ao calor humano e o regional ao global. Estamos seguindo com foco em inovações para o mercado que fortaleçam a essência da hospitalidade brasileira. Do meu ponto de vista, essa combinação é o que nos torna únicos e nos prepara para os desafios dos próximos anos”, acrescenta Santos.

Novas formas de hospitalidade e ESG

Quando na hotelaria tudo ainda era mato, pouco se falava de outras opções de produtos de hospitalidade. Os tempos mudaram e, atualmente, a indústria compete com acomodações alternativas, como o short-term rental, o que demanda mais criatividade, inovação e personalização.

Diniz vê com bons olhos um amplo leque de opções no setor, mas pondera que os novos segmentos podem afetar os serviços hoteleiros. “Quando nasceu, o Uber tinha um alto padrão dos carros, por exemplo. A mesma coisa aconteceu com a hotelaria, que atualmente não tem padrão de entrega. Hoje, grandes redes e hotéis independentes oferecem um serviço inferior. Assim, por mais que esses negócios sejam positivos, podem trazer uma concorrência desleal para o setor”.

Fernando Santos

Santos: setor mistura o novo e o tradicional

O CMO pontua que, tanto o short-term rental, quanto a multipropriedade, possuem um nível de oferta elevado, o que é positivo para o desenvolvimento de destinos. Contudo, o executivo pede cautela. “É preciso tomar cuidado, sobretudo para quem está à frente, para não termos os famosos pools paralelos, desvirtuando a entrega. O hoteleiro precisa estar ligado a tudo isso, observando todo esse cenário”.

Práticas ecológicas, iniciativas corporativas e investimentos visando avanços na agenda ESG ganharam força na indústria. Mais do que isso, a criação de uma cultura sustentável baseada no estímulo da hotelaria têm empoderado comunidades locais, envolvendo também os hóspedes.

“É fundamental que o setor tenha uma vocação muito bacana de educar. Pense em uma criança, uma família, que às vezes não têm esse nível de consciência, e poder ver e participar dessas iniciativas. Eu vejo que o segmento pode ter esse avanço até mais no sentido educativo. É fundamental, e a tendência é avançar”, avalia Diniz.

A hotelaria da Geração Z

Perante um segmento que vive uma escassez de mão de obra, atrair e reter os mais jovens é parte crucial para a manutenção e sustentabilidade do setor. Com a entrada da Geração Z no mercado de trabalho, os gestores de hoje vivem o desafio de falar a mesma língua e atender às expectativas de profissionais com uma mentalidade diferente.

Em busca de trabalhos alinhados com seus valores pessoais e pouco interesse pelo alto escalão de grandes empresas, a Geração Z moldará a hotelaria do amanhã. “É uma geração que acompanha o mundo dinâmico, possui senso de urgência aflorado e que sabe trocar opiniões. Acredito que esses jovens saberão como explorar novas ideias de forma coletiva e interativa”, avalia Gabrielle.

Martins acredita que um dos maiores desafios da indústria é manter as novas gerações interessadas em seguir na hotelaria, setor conhecido como a porta de entrada para o mercado de trabalho. “O treinamento é uma agenda diária, seja para colaboradores, quanto para novos entrantes. Neste sentido, gostaria que a hotelaria fosse trabalhada pelo poder público como uma política social, no qual o jovem tem a possibilidade de fazer cursos profissionalizantes e técnicos no turno inverso da escola e ingresse no mercado de trabalho o mais rápido possível”, comenta o diretor da Accor.

Seguindo a mesma linha de raciocínio de Martins, Bonadona pontua que as novas gerações têm grande capacidade de aprender e se envolver. No entanto, o ex-CEO da Accor pondera que os hotéis devem levar em consideração os entraves do setor, como carga horária e remuneração. “É uma geração com muitas expectativas, que quer avançar mais rápido, com compatibilidade entre a vida profissional e pessoal. E isso pode ser desafiador. A hotelaria precisa cuidar bem dos seus colaboradores e da evolução desses profissionais”, acrescenta Bonadona.

Os c-levels do futuro

E como serão os C-levels do futuro na hotelaria? Lucila Quintino, CEO da HotelConsult, afirma que os líderes de amanhã devem ser especialistas em gestão de pessoas, com pouca demanda por especializações específicas. “As expectativas para esses altos executivos são cada vez mais generalistas. É um profissional que sabe lidar com pessoas, com um olhar humanizado, atento à tecnologia e à sustentabilidade. Dominar a gestão de pessoas está no topo das exigências, com motivação e retenção de talentos”, explica Lucila.

Martins avalia que, independentemente da geração, a liderança precisa estar atenta aos comportamentos de consumo e a forma como os mesmos escolhem seus meios de hospedagem.“A minha perspectiva para o futuro da hotelaria é que tenhamos cada vez mais hotéis de qualidade, seja de categoria econômica nas cidades menores, quanto de categorias mais elevadas nas grandes cidades”, complementa Martins.

“Acredito que o perfil da mão de obra mudará para os extremos. Teremos cada vez mais pessoas muito jovens e mais experientes (50+) nas recepções e atividades dos hotéis. O meu desejo é de que a hotelaria e o turismo ocupassem lugar de destaque em políticas públicas na geração de empregos e desenvolvimento sociocultural no Brasil”, continua o diretor da Accor.

Henrique Martins

“Manter novas gerações é desafiador”, pontua Martins

Diniz olha para o futuro como um horizonte de muitas mudanças, tanto na forma de consumir, quanto na maneira como as novas gerações encaram o mercado de trabalho. “Preocupo-me demais porque estamos falando de uma geração que não tem as mesmas aspirações de liderança. Faltam líderes no setor. Isso é algo que me aflige, porque a sociedade sempre foi puxada por grandes líderes, e vemos uma nova geração que não tem essa gana de tomar a frente. Agora, não devemos ficar nesse saudosismo, é preciso extrair o melhor, que é o propósito. Com certeza, nascerão negócios que entreguem valor”, diz.

Para o futuro da profissão, Santos é cauteloso, mas, ao mesmo tempo, otimista em relação ao crescimento profissional do hoteleiro. Em seu discurso, ele cita que quaisquer vislumbres dos próximos anos passam, prioritariamente, pela evolução da própria hotelaria. O diretor da Amarante acredita que a essência da profissão não pode ser deixada de lado, em algo que ele chama de “hospitalidade genuína”.

“Os próximos anos trarão desafios que vão além da implementação de novas tecnologias ou da adaptação a modelos de negócio emergentes. Será necessário criar experiências que emocionem e marquem os hóspedes de maneira única e inesquecível. Para acompanhar isso, enquanto hoteleiros, precisaremos ser dinâmicos, empáticos e altamente qualificados, olhando atentamente para mudanças no mercado e às expectativas dos viajantes. Acredito, firmemente, que as habilidades técnicas continuarão sendo importantes, mas a inteligência emocional e a capacidade de criar conexões humanas serão os diferenciais do futuro”, conclui Santos.

Bonadona elenca alguns pontos para os C-levels do futuro. “Atenda às necessidades do investidor e dos seus colaboradores, tudo isso com inteligência emocional. O setor precisa de profissionais que gostem de contato humano, liderar equipes”, avalia.

Para Martins, um hoteleiro nunca pode perder a capacidade de bem atender um viajante e de entregar aquilo que é esperado de cada hotel. “Um sorriso na recepção dos hotéis muda a experiência de viagem das pessoas”, conclui.

E você? Chegou até o final desse longo texto e se identificou com o que as fontes disseram? Não há um caminho definitivo para crescer no setor. Não existe bala de prata, mas é certo que novas competências para evoluir são necessárias. Ainda assim, em um setor feito por e para pessoas, o cuidado com quem está no backoffice ou do outro lado do balcão continuam sendo prioridades.

(*) Crédito da capa: ChatGPT

(**) Crédito das fotos: Divulgação