Hoje a hospitalidade figura como uma das profissões tendência para as próximas décadas, em detrimento de outras tantas, fadadas ao desaparecimento. “As profissões com menor chance de substituição são aquelas com muita interação e muita subjetividade humana, que envolvem saber lidar com pessoas e resolver situações nas quais as emoções são muito predominantes“, resume o professor e pesquisador Paulo Rocha e Oliveira.

Com isso, cresce a quantidade de cursos, capacitações e especialistas prontos para nos ensinar truques, ou melhor, estratégias do bom atendimento e do “luxo”, que farão parecer que você ou seu negócio exalam hospitalidade. Isso não é um problema, mas não aprofunda nem explora todas as dimensões relacionais e emocionais a serem compreendidas para que possa haver, de fato, hospitalidade. Essa visão mercadológica vende dicas que nem sempre se sustentam, pois frequentemente não dialogam com a autenticidade e os valores das marcas ou profissionais. É semelhante a receber dicas genéricas de como se comportar em um primeiro encontro: quando muitas dessas gentilezas — abrir a porta do carro, usar determinado tipo de roupa, olhar nos olhos, manter uma escuta ativa etc. — não fazem parte de você, os truques acabam e você termina expondo quem realmente é, uma hora ou outra.

No fundo, o que se ensina muito são técnicas de um bom serviço, e isso não é sinônimo de hospitalidade. O serviço é do reino do método; a hospitalidade é do reino das emoções.

Muito antes de existir toda a ciência da economia da experiência, antes mesmo de existir todo o conceito de cliente e negócios que temos hoje, já existia a hospitalidade. Na Grécia antiga, por exemplo, receber um hóspede era o equivalente a receber proteção divina (Zeus é, por vezes, chamado de Zeus Xenios, por seu papel de protetor de estranhos).

Para os beduínos no deserto, uma excelente hospitalidade deve ter uma forma tangível e visível, como, por exemplo, preparar uma boa fogueira, apresentar cânticos, matar um camelo em alguns casos para servir de alimento, ou preparar um café. Isso tudo é serviço, mas que resulta de uma profunda conexão com os códigos milenares dos valores da hospitalidade como estilo de vida.

Precisamos dizer, entretanto, que a retomada da hospitalidade com nova força não veio da indústria, que respirava por aparelhos durante a pandemia do COVID-19. Foi resultado da mais pura necessidade humana de (re)conexão e pertencimento, revelando que a nossa humanidade é o nosso denominador comum mais importante, independentemente do segmento. E a hospitalidade condensa os códigos de expressão humana desde os tempos imemoriais da civilização.

Beduínos e etnias similares veneram o acolhimento

Há muitos anos, quando criança, fui convidado por um amigo, morador de uma favela perto de casa, para um almoço de Páscoa com ele e sua mãe. Serviram-me uma bacalhoada divina, receita muito antiga de família. Mostraram-me fotos, ficamos na calçada conversando e rindo e as horas passaram voando. Tive ali uma experiência de hospitalidade única — que não se compra nem se fabrica em série. Mimetizar esse sentimento como estratégia de mercado é, sim, muito válido, mas, para isso, é necessária a compreensão de que a hospitalidade é do âmbito artesanal e não do industrial. Para que ela exista, você precisa sentir que adentrou um universo muito íntimo e pessoal; sentir que foi acolhido de forma individual e personalizada em um mundo novo, diferente e que te expande.

A hospitalidade, apesar de milenar, precisa ser algo novo sempre, não algo pronto ready-made. Não é qualquer playlist por exemplo, é uma playlist em que cada canção conversa tanto com seu universo quanto com o universo do seu convidado. Não é qualquer decoração, qualquer comida, qualquer sorriso e frases prontas, por melhores que sejam. Para ser autêntico, você precisa mergulhar no mais profundo lago do autoconhecimento, para depois imprimir seus valores nas expressões de generosidade e serviços que trarão sucesso, reputação e rentabilidade sustentável para seu negócio e suas relações. E, como tudo que é artesanal, não se ensina e nem se aprende de uma hora para outra. São necessários tempo e intenção.

Como disse anteriormente, para os beduínos, a hospitalidade precisa ser tangível por meio de gestos e expressões. Para essas expressões de hospitalidade, existe ciência, é claro, mas não fórmula pronta. Você precisará descobrir o que faz de você, você. O que faz do seu negócio algo único.

E, assim, a hospitalidade, que sempre esteve presente na história das civilizações, permanece mais relevante do que nunca, na era em que o trabalho desempenha papel tão fundamental em nossas vidas.

Quando esses dois universos se juntaram, o técnico do serviço e o subjetivo da hospitalidade, fez-se uma indústria (representada por acomodações, transportes aéreos, trens de turismo, agências de viagens, alimentos e bebidas, museus, cruzeiros, recreação e convenções), que hoje representa mais de 11% do PIB da econ

omia mundial, sem contar as receitas indiretas, quando adquirem bens e serviços de outros fornecedores e varejistas.

Acontece que a busca humana por indulgência, por se sentir acolhido, pertencente, seguro, percebido, respeitado e cuidado sempre existiu e sempre irá existir. Por isso, hoje, empresas de outros segmentos que aprenderam a dominar os códigos da hospitalidade, como Oprah, Magnólia, Apple, Starbucks, T-Mobile, American Express e muitas outras, alcançaram não só resultados estelares financeiramente, mas também conquistaram o coração de seus clientes.

A hospitalidade é, por definição, um convite para quebrar a fronteira entre o eu e o outro. É abrir espaço para receber o diferente, o novo, o contemporâneo. Contudo, somos ainda uma indústria cujo modus operandi não dialoga – pelo menos não com a velocidade necessária – com as novas configurações de trabalho, qualidade de vida e saúde emocional, nos mantendo reféns das mazelas de um gargalo profissional e um êxodo da indústria que cresce exponencialmente.

Servir com as duas mãos podem ser valiosas na arte do acolhimento

Num contexto em que se fala tanto na experiência do cliente quanto na do colaborador, o segmento hoteleiro perde oportunidade de estar à frente dos debates centrais que circundam as transformações do mundo do trabalho. Sendo assim, levanta-se o questionamento: o quanto a hospitalidade está presente na forma com que nossa indústria se relaciona com outras?

Enquanto isso, estamos debruçados sobre o que pode ser justamente a nossa salvação: a beleza dos próprios valores da hospitalidade, que podem ser fundamentais para alinhavar, por exemplo, os temas atuais de employee e customer experience, pois detemos uma ciência milenar do bem receber, da atenção ao detalhe, da sofisticação, das dimensões sensoriais e da complacência, para citar alguns.

A hospitalidade pode ser crucial para interligar e relacionar diferentes áreas de atuação, seja na indústria, no comércio, ou nas iniciativas do poder público e privado, de forma a fomentar encontros e fóruns, criando uma arena que possibilite que problemas encontrem soluções, pelo simples fato de nos conectarmos com o desconhecido, com o diferente! Receber e transmitir conhecimento de e para outras realidades e modelos de negócio pode ser justamente o que irá permitir que avancemos. Ao mesmo tempo, permitirá que os valores da hospitalidade cheguem a diferentes indústrias, de modo que não somente iremos sobreviver, mas também contribuir com um futuro mais ético e humano do mundo do trabalho.

Contudo, para isso, precisamos nos desenraizar. Nos (re)apossar de uma hospitalidade que se inscreve no mundo, nossa casa comum, que cria novos lugares que decorrem de novos encontros e novos aprendizados. Não se trata mais de uma hospitalidade passiva, que espera baterem à porta. Trata-se de uma hospitalidade ativa, propositiva e afirmativa, que migra, explora, convida e participa do mundo.

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Profissional de capacitação e facilitação em hospitalidade e CX, com 15 anos de experiência de mercado de alto padrão, Silas Grecco é coautor do 1º livro de CX no Brasil. Silas foi de mordomo a gerente global de CX e treinamento do grupo Fasano, onde trabalhou por uma década. Hoje acredita que a hospitalidade é a síntese máxima das habilidades humanas do profissional do futuro. Já levou esses saberes para clientes como Chanel, Cris Barros, Accor, Alelo, Hospital Oswald Cruz, Hotel Fuso e Hotel Casana.

(*) Crédito da foto de capa: divulgação/Silas Grecco
(**) Crédito das fotos internas: Tahra-May Berdai e Motoki Tonn (Getty Images)