Em um passado não tão distante, a hotelaria era vista como um setor capaz de unir estabilidade e prestígio — uma combinação altamente atrativa para construir uma carreira. Porém, com as mudanças geracionais, econômicas e setoriais, o segmento parece ter perdido seu sex appeal, agravado pela escassez de mão de obra e por uma crise silenciosa na formação em hospitalidade.
O Dia do Hoteleiro, celebrado em 9 de novembro, chega este ano em meio a uma reflexão necessária: o Brasil precisa repensar a atratividade da hotelaria. A tendência preocupa redes e educadores. Paradoxalmente, o setor vive um dos ciclos mais positivos dos últimos anos, com altas de dois dígitos em RevPar. O cenário escancara um contraste: o mercado cresce, mas faltam hoteleiros formados para ocupar posições estratégicas.
Nos bastidores, gestores de redes relatam a dificuldade para preencher cargos de liderança intermediária. Educadores e profissionais concordam que a desconexão entre academia e mercado é um dos grandes gargalos.
Mariana Aldrigui, professora, doutora e pesquisadora na USP (Universidade de São Paulo), afirma que as faculdades de Hotelaria são, em sua maioria, privadas e consideradas caras. Além do fator financeiro, a especialista acredita que o setor perdeu seu glamour e apelo perante as gerações mais jovens, especialmente em função das características do trabalho: presencial, desgastante e de baixa remuneração.
“Cursos técnicos e específicos para garçons, camareiras, as diferentes habilitações em A&B, entretanto, continuam sendo bastante procurados especialmente quando oferecidos por entidades que patrocinam a formação”, explica Mariana.

Muito além das escalas
É de amplo conhecimento do setor que as jornadas de trabalho são agravantes para a escassez de profissionais. Tais fatores somados à baixa remuneração levam a um combo pouco favorável ao setor. Mas não se trata apenas de escalas. Kátia Melo, gestora Estratégica de Talentos do Grupo Nannai, salienta que existe, ainda, a concorrência com outras áreas e cursos, assim como a falta de conhecimento e divulgação de oportunidades de desenvolvimento na indústria.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Camila Andrade, gerente de RH (Recursos Humanos) da Hotéis City & Sea, acredita que há uma percepção errônea do setor. “Muitos jovens ainda associam a profissão apenas à rotina operacional, sem enxergar o universo de oportunidades que ela oferece. Além disso, há um distanciamento sobre o que é ensinado em sala de aula e o que o mercado realmente pratica. A hotelaria é viva, dinâmica e cheia de nuances humanas. E essa vivência deve ser experimentada desde cedo”.
Psicólogo e diretor da Mapa de Talentos, Hugo Nisembaum possui ampla expertise em desenvolvimento de pessoas. Segundo o especialista, a hotelaria não procura se destacar em seus pontos fortes, enfatizando o que faz da atividade uma opção atrativa. “O setor hoteleiro oferece contato com pessoas e culturas, mas ficamos apenas batendo na tecla de escalas e remuneração. Se eu não me sentir atraído pelo que faço, não há salário e jornada que me faça continuar”.
Nisembaum pontua que é preciso ir além do básico para cativar as novas gerações, pensando, de forma conjunta, em como fazer diferente. E a resposta para tal dilema, segundo ele, está no diálogo. “Tudo ainda é muito decidido de cima para baixo. Se você não envolve a base, vai continuar com os mesmos problemas. É preciso dar espaço ao diálogo”.

Formação como trunfo
Referência em formação no setor hoteleiro, o Senac São Paulo mantém um portfólio robusto, com cerca de 30 cursos voltados à área de Hotelaria, distribuídos em diferentes níveis e modalidades de ensino. A instituição oferece desde formações iniciais e cursos livres, passando por qualificações e cursos técnicos, até graduação (tecnológica e bacharelado), pós-graduação e extensão universitária.
Daniela Mendes, coordenadora na Gerência de Desenvolvimento Educacional da área de Turismo e Hospitalidade no Senac São Paulo, revela que, nos últimos anos, houve um crescimento expressivo na procura por essas formações. “Entre 2022 e 2024, o número de matrículas aumentou de 1,4 mil para 1,8 mil estudantes, e a projeção para 2025 é de encerrar o ano com aproximadamente 3,8 mil matrículas em cursos de hotelaria”.
Para manter o curso atrativo e atualizado, as estruturas curriculares são revisadas periodicamente em diálogo com o mercado, incorporando tendências como gestão humanizada, hospitalidade digital, sustentabilidade, experiência do cliente e inovação em serviços. “Essa atualização garante uma formação contemporânea, que integra competências técnicas (hard skills) e comportamentais (soft skills), fundamentais para liderar equipes, encantar clientes e atuar em contextos complexos”, continua Daniela.
A coordenadora da instituição analisa que a baixa atratividade entre os jovens é um fenômeno multifatorial. As novas gerações valorizam relações de trabalho mais flexíveis, propósito claro e ambientes que estejam alinhados aos seus valores pessoais. Nesse cenário, o setor hoteleiro ainda enfrenta o desafio de atualizar sua proposta de valor para se tornar mais atrativo a esses novos profissionais.
“A hotelaria é, historicamente, uma área que oferece amplas possibilidades de ascensão profissional, especialmente para quem investe em formação qualificada. É um segmento em que o comprometimento e o desenvolvimento contínuo podem transformar trajetórias, funcionando, muitas vezes, como um verdadeiro elevador social, inspirando-se em inúmeros exemplos de profissionais que iniciaram em funções operacionais e hoje ocupam posições de liderança”, diz Daniela.

Um futuro a ser reconstruído
O esvaziamento do setor é um sintoma da desvalorização de uma das profissões mais essenciais para o turismo. À medida que o segmento se moderniza, cabe ao mercado, às instituições e aos próprios profissionais repensar como formar e inspirar a próxima geração de hoteleiros.
Nisembaum diz que as iniciativas do setor ainda são muito “feijão com arroz”. “São ações e respostas básicas, que não incentivam formas diferentes de treinar e desenvolver profissionais. A hotelaria precisa aproveitar o que tem de melhor e cuidar das pessoas. E não digo apenas no Brasil, mas também em outros países”.
Olhando para o futuro, Daniela defende que a educação ocupa uma posição fundamental na reversão do cenário atual, reconhecendo as instituições educacionais como parceiras estratégicas das empresas. “Somente com essa colaboração efetiva entre educação e mercado será possível construir caminhos sustentáveis para o desenvolvimento da hotelaria e garantir a atração e retenção de novos talentos”, avalia.
Mariana afirma que, cada vez mais, o setor contará com hoteleiros autoformados, especialmente em produtos mais distantes de grandes centros urbanos. “Hotéis, de qualquer tamanho, como referência de serviços e boas experiências em determinadas regiões, atuam como ponto de referência. A formação no ofício, guiada por um profissional mais experiente, sempre foi fundamental no setor. E a demanda por qualificação virá das próprias empresas. As companhias não dispensam talentos autoformados. É uma questão de qualificar e reter”.
Camila também vê esse perfil de profissional com bons olhos, fruto de um mercado mais dinâmico e ágil. “Esse profissional se desenvolve no chão do hotel, aprendendo, observando, testando. O que precisamos é incentivar para que ele unifique prática e teoria, buscando formações complementares. A hotelaria é uma escola por si só, mas o estudo traz profundidade e visão estratégica. O equilíbrio entre os dois mundos é o que forma talentos verdadeiramente preparados”.
Para suprir os gargalos de seu quadro de funcionários e, ao mesmo tempo, ajudar na formação de profissionais para o setor, o Nannai fundou, há dois anos, o IANNAN (Instituto Amigos do Nannai), que tem como objetivo promover a capacitação profissional para jovens e adultos da comunidade local.
O IANNAN conta com formações em hospitalidade, idioma e tecnologia em Ipojuca (PE), que promovem acesso ao mercado de trabalho e aumento de renda. Até o momento, 300 pessoas já foram impactadas. “Cerca de 60% dos formados estão no mercado de trabalho e 38% foram contratados pelo Nannai”, enfatiza Kátia, que explica que o instituto não pretende substituir o curso superior em Hotelaria, mas sim oferecer um primeiro contato com a atividade.
A rede Hotéis City & Sea também possui programas de trainees e formações técnicas, visando à valorização de talentos. Um centro de treinamento foi criado em um esforço conjunto para mostrar que a hotelaria pode oferecer uma carreira de sucesso. “O setor está entendendo que cuidar de pessoas, as que hospedamos e as que trabalham conosco, é o verdadeiro caminho para o futuro da hospitalidade”, finaliza Camila.
(*) Crédito da capa: Hotelier News
(**) Crédito das fotos: Divulgação















