Pandemia, eventos climáticos, economia instável. Nos últimos anos, o setor hoteleiro vem se deparando com diferentes adversidades. Como observamos nos acontecimentos passados e recentes, o turismo é um segmento sensível, mesmo que resiliente. Após tantos momentos inesperados, chegou a hora dos hoteleiros colocarem a gestão de crise entre suas prioridades. Ainda que não seja possível prever muitas situações, os empreendimentos podem (e devem) se proteger para mitigar prejuízos.

Impossível falar de gestão de crise sem citar as enchentes que afetaram o Rio Grande do Sul em maio deste ano. O faturamento do turismo gaúcho sofreu uma queda de 16,6% no quinto mês de 2024 — o que representa uma perda de mais de R$ 118 milhões, segundo dados da FecomercioSP (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo).

De acordo com estimativas da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), a crise climática no estado deve custar R$ 97 bilhões em perdas para a economia do país este ano, sendo R$ 58 bilhões referentes apenas ao Rio Grande do Sul.

Em maio, o setor hoteleiro gaúcho registrou queda de 32% no faturamento em maio frente ao mês anterior, conforme divulgado pela Abracorp (Associação Brasileira de Agências de Viagens Corporativas) — o que representa declínio de 40% na receita dos hotéis.

Ao mesmo tempo em que o turismo foi um dos setores mais afetados, principalmente com o fechamento do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, Celso Sabino, líder da pasta, colocou o segmento como uma das alavancas para recuperar as perdas geradas pelas enchentes.

Como um setor resiliente, a hotelaria gaúcha tratou de arregaçar as mangas. Os hotéis de Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, iniciaram campanhas para fomentar o turismo nas férias de julho, como a iniciativa Abrace Bento. Em Canela, 12 meios de hospedagens se uniram para incentivar o retorno dos visitantes. O trade turístico ainda criou um comitê de crise para recuperar os prejuízos.

Otavio Novo

Área é negligenciada, diz Novo

Falhas do setor

É fato que o que passou não pode ser mudado, todavia, é possível abrandar acontecimentos futuros. No caso do Rio Grande do Sul, por exemplo, grande parte da oferta hoteleira é composta por empreendimentos independentes e familiares, que não possuem estruturas de redes multinacionais como respaldo. Ou seja, priorizar a gestão de crise se tornou uma questão de sobrevivência.

Consultor de gestão de crise, Otavio Novo esteve em Gramado para orientar os hoteleiros sobre como desenvolver suas próprias iniciativas para casos emergenciais. O especialista, contudo, destaca que esta não é uma das prioridades do setor pelo fato de que o Brasil, historicamente, não é afetado por catástrofes climáticas.

“Acaba sendo algo negligenciado ou no final da lista de prioridades. Muitas outras questões vêm na frente, como resultados, investimentos, etc. Quando uma situação inesperada acontece, como as enchentes, os gestores são pegos de surpresa. E isso passa pela formação desses líderes. Normalmente, os hotéis pensam mais em ocorrências menores, como roubos”, explica Novo.

De acordo com o consultor, a pandemia acendeu um alerta para a necessidade da criação de um comitê de crise interno nos empreendimentos, porém as iniciativas foram adotadas quando o problema já estava entre nós. “Foi um divisor de águas, uma vez que muitos procedimentos foram desenvolvidos em prol da sobrevivência do negócio. Mas precisamos entender que as iniciativas também precisam ser preventivas e não apenas reativas”, continua.

Com uma limitação grande de recursos e pessoas especializadas, implementar um plano de gestão de crise acaba voltando para o fim da fila, agravado pelo instinto natural de acomodação do segmento.

Gabriela Schwan

Gabriela atua na linha de frente do turismo gaúcho

Os primeiros passos

Para implementar a gestão de crise, o primeiro passo, segundo Novo, é pensar em todas as possíveis adversidades que o empreendimento pode sofrer. Nesta fase, os hotéis realizam um mapeamento de riscos e como preveni-los com investimentos.

“Existe uma diferença entre gestão e gerenciamento de crise. A gestão é todo o processo, com mapeamento de riscos e possíveis ocorrências. O gerenciamento é a resposta sem o preparo”, destaca o consultor, que ressalta que qualquer perfil e porte de hotel pode fazer sua gestão.

Os gestores devem levantar, com fontes internas e externas, os riscos que a propriedade pode sofrer. Novo recomenda que cada hotel crie um pequeno grupo para realizar esse planejamento, utilizando como base o histórico do empreendimento, considerando seu tamanho, localização, entre outros pontos.

Com a lista em mãos, o próximo passo é identificar prioridades. “Existem fórmulas simples para avaliar o nível de probabilidade de um risco acontecer. É possível fazer uma escala de 1 a 5 para medir a chance de determinada situação ocorrer. Lembrando que, quando um cenário adverso acontece, o impacto também respinga na imagem do negócio, podendo tomar uma proporção ainda maior”, alerta o especialista.

Novo enfatiza que a gestão de crise deve ser pautada em três pilares: impacto, probabilidade e controle para avaliar prioridades. “Se o impacto for alto e o nível de controle for bom, o grau daquele risco vai cair, logo, a priorização é mais baixa”, exemplifica. Em linhas gerais, a definição da maturidade de cada propriedade vai orientar para onde os recursos devem ser direcionados.

“Identifique onde estão as vulnerabilidades, corrija o que puder, e o que não puder coloque no gerenciamento. É preciso saber como reagir em cada processo, pois a maioria das crises são potencializadas por erros evitáveis. Realize treinamentos e crie um ambiente seguro e maduro. É algo simples de ser feito”, pontua Novo.

O que foi feito no RS

Voltando ao Rio Grande do Sul, o consultor pontua que a situação se tratou de um fator externo, que pode ser comparado à pandemia. Fora do controle de previsão dos hotéis, a crise climática do estado afetaria até os mais preparados empreendimentos.

“Pelas condições do local, como a alta dependência do transporte aéreo e terrestre, que alimenta o turismo, esses pontos deveriam ser colocados em consideração, principalmente para a Serra Gaúcha. Tanto a iniciativa privada quanto a pública precisam ter essa visão preventiva”, reforça o especialista.

Em casos como este, o governo precisa lembrar que o turismo é uma atividade econômica relevante, que demanda recursos e gera receita. Ou seja, fornecer a estrutura necessária para situações adversas também passa pela gestão pública.

“Acredito que o principal ensinamento é buscar a maturidade da gestão de crise, considerando os impactos nos negócios, com visão de dentro para fora e de fora para dentro. Cada hotel precisa fazer a sua lição de casa, olhando para sua realidade”, salienta o consultor.

Ricardo Reginato, secretário Municipal de Turismo de Gramado, alega que enchentes desta proporção não constam no histórico do estado, o que dificultou a prevenção. Segundo o gestor, o principal desafio foi o deslocamento de turistas com o fechamento do aeroporto da capital gaúcha.

Com o ápice da crise ficando no retrovisor, a pasta mira seus esforços em reconstruir a imagem do destino perante o mercado. “Realizamos campanhas de comunicação voltadas para o público final com influenciadores, focadas nas redes sociais para sensibilizar sobre a segurança na Serra Gaúcha. Tivemos dificuldade para acessar recursos, uma vez que esta é uma questão pública”, lamenta o secretário.

Para fazer a gestão de crise no destino, Reginato afirma que reuniões constantes são realizadas para apontar problemas — como foi o caso da aula de Novo junto ao trade turístico. “Nossa proposta era de sensibilizar a hotelaria local, estabelecer ações, alinhar a comunicação e reavaliar preços”.

O secretário salienta que não é mais possível ignorar as mudanças climáticas, além de reforçar a necessidade do desenvolvimento de planos estratégicos em prol da segurança dos turistas e moradores. “Agora, precisamos retomar a normalidade e buscar alternativas, mesmo que teóricas por enquanto. O turismo é sempre incerto, mas estamos voltando a receber pessoas”.

Magda Kiehl

Magda: suporte é diferencial na Accor

O que dizem os hoteleiros

Vice-presidente de Operações da Resorts Brasil, Felipe Castro afirma que a entidade teve uma troca constante com hoteleiros gaúchos no período de crise, além de incentivar arrecadações para a população. “Criamos comitês para diversas áreas operacionais e a ideia é atuar com a gestão de crise também, mas de forma mais estruturada. Durante a pandemia, muita coisa foi feita, e no caso do Rio Grande do Sul, houve a união das entidades. Temos que dar continuidade a essas ações no dia a dia”.

Na linha de frente da retomada do setor no estado, Gabriela Schwan atua como vice-presidente do hub de turismo do Rio Grande do Sul. A CEO da Swan Hotéis esteve envolvida com o auxílio ao comitê de crise do governo.

“Tratamos de todas as possibilidades com o comitê, trazendo um embasamento forte de forma fácil e traduzida para as empresas. Por outro lado, senti falta de interesse das pessoas, ainda não dão a devida importância ao tema”, diz Gabriela.

Iniciativas

Na Swan Hotéis, um comitê de crise foi montado durante a pandemia, que reforçou processos de qualidade. Segundo a CEO, ter esse departamento estruturado facilitou a retomada das atividades após as enchentes. “Nosso hotel em Rio Grande foi afetado pelo escoamento das águas, mas sofremos apenas pequenos danos. Conseguimos reabrir em 15 dias após permanecer 40 dias sem atividades”.

Magda Kiehl, senior vice-president Legal, Compliance & Security Accor Americas – Premium, Midscale & Economy Division, revela que a rede francesa possui uma gerência especializada e dedicada à gestão de crises, responsável por lidar com situações sensíveis, emergenciais e eventos que possam comprometer a continuidade operacional tanto na sede quanto nos hotéis.

“Essa gerência atua tanto de forma preventiva quanto reativa. Além disso, mantemos um Comitê de Gestão de Crise, formado por especialistas de diversas áreas e regularmente treinado. Essa equipe diversificada e capacitada nos permite agir de maneira ágil e assertiva, independentemente do cenário, para garantir decisões eficazes e um plano de ação robusto para a recuperação dos negócios ou a mitigação de risco”, comenta a executiva.

Em meados de julho, todos os empreendimentos da rede no Rio Grande do Sul já estavam em operação. Em casos como as enchentes, difíceis de prever, Magda afirma que é possível reduzir danos e acelerar a recuperação dos negócios, mesmo nos cenários mais adversos.

“O fator crucial é adotar uma abordagem proativa e abrangente para a gestão de riscos, antecipando cenários de descontinuidade com impactos que variam de baixo a severo. Ao desenvolver planos de ação robustos para enfrentar tanto perdas pequenas quanto grandes, você estará melhor preparado para lidar com as adversidades. Além disso, a análise de estatísticas, KPIs e riscos é essencial para identificar quais riscos devem ser mitigados, transferidos ou eliminados, e até mesmo aqueles que podemos aceitar como parte do negócio. Obter informações prévias e realizar avaliações e análises de risco contínuas também são práticas fundamentais para uma gestão eficaz e uma recuperação mais ágil”, pontua.

Castro, que também atua como diretor de Operações do Grupo Tauá de Hotéis, conta que a rede mineira possui um comitê de crise composto pelo time executivo, de onde saem ações de segurança e prevenção de acidentes. Todavia, ele afirma que a empresa está em fase de ajustes neste aspecto, entendendo a necessidade de olhar para grandes riscos.

“O Tauá sempre teve esse olhar, mas ficou mais latente durante a pandemia, principalmente nas áreas de segurança e manutenção. O Covid-19 mostrou que não estamos preparados para tudo, o que nos fez olhar para outras situações. Nosso comitê se fortaleceu, mas sempre estamos mais prontos para problemas internos do que externos — e o exemplo do Rio Grande do Sul não deixa mentir”, comenta Castro.

Magda enfatiza que, em grandes redes, como a Accor, o diferencial é contar com o suporte de uma área dedicada, com manuais trabalhados, procedimentos estruturados e treinamentos.

“Embora a pandemia de Covid-19 tenha apresentado grandes desafios, principalmente por conta de sua extensão e duração, nossa gestão não sofreu mudanças, mas sim o que realizamos foi a ativação dos nossos planos de resposta a incidentes e recuperação de negócios, conforme escrito em nosso manual. Esse comprometimento com a preparação e resposta eficaz demonstra a resiliência e a eficácia em nossa estratégia de gestão de crise”, complementa a executiva.

Gabriela ressalta que o episódio no Rio Grande do Sul é uma oportunidade para pleitear pautas junto ao governo e reforçar demandas do setor. “Um estado não pode depender de apenas um aeroporto. Quase todos os municípios foram afetados. Os recursos têm que sair do governo federal, que está longe do que o estado precisa”.

“Em primeiro lugar, é essencial que todas as empresas possuam uma área ou setor dedicado exclusivamente à gestão de crise’. Somente dessa forma é possível garantir que o cenário seja tratado com a devida prioridade, sem distrações de outras atividades. Além disso, é crucial testar regularmente seus protocolos e mantê-los atualizados. Não adianta ter informações se elas não estão alinhadas com a resposta ao incidente ou se não são conhecidas pela sua equipe operacional. Por último, nunca subestime o pior cenário. Este deve ser minuciosamente estudado pelo comitê de crise, mesmo que sua probabilidade de ocorrência seja baixa ou remota”, finaliza Magda.

(*) Crédito da capa: Freepik

(**) Crédito das fotos: Divulgação