Ter um “pedaço do paraíso” virou o sonho de muitos brasileiros — e a multipropriedade surgiu justamente como o caminho para torná-lo possível. O modelo, que permite dividir a posse de um imóvel em cotas, ganhou força nos últimos anos e transformou resorts em grandes empreendimentos compartilhados, movimentando bilhões e atraindo novos perfis de investidores. Mas, junto com o crescimento, vieram também as polêmicas: abordagens insistentes, promessas de luxo acessível e contratos difíceis de entender reacenderam o debate sobre os limites éticos das vendas e os riscos de repetir os erros do timeshare.
A reportagem do Hotelier News ouviu especialistas e representantes do segmento para entender até que ponto essas práticas comerciais, muitas vezes consideradas abusivas, podem comprometer não apenas a imagem das empresas envolvidas, mas também a saúde e o crescimento sustentável de todo o setor de multipropriedade no país.
Para Alejandro Moreno, CEO da Trul Hotéis, um dos diferenciais da multipropriedade é o vínculo emocional que o proprietário cria com o empreendimento. “Mesmo ao adquirir uma fração, o cliente desenvolve um forte senso de pertencimento. Esse é um aspecto único do modelo, mas também um desafio: é necessário equilibrar a lógica da operação hoteleira com o vínculo emocional do proprietário”, pontua.
As críticas às técnicas de venda, no entanto, ainda cercam o setor, com comparações frequentes ao timeshare. Para o executivo, há diferenças fundamentais. Ele diz que é natural que existam diversas formas de abordagem comercial, mas é importante destacar que métodos agressivos são insustentáveis no médio e longo prazo. Moreno reforça que insistência excessiva tende a gerar cancelamentos e afetar a credibilidade do produto.
Na visão do executivo, quando a multipropriedade é apresentada com transparência, o próprio conceito se sustenta, democratizando o acesso a férias de qualidade e experiências familiares duradouras.
O amadurecimento do segmento, segundo ele, também se deve ao marco legal. “O Código de Defesa do Consumidor e a Lei da Multipropriedade trouxeram maturidade e credibilidade para o setor”, observa. O Brasil, destaca, já figura entre os três maiores mercados de multipropriedade do mundo, impulsionado por um público que gosta de viajar e valoriza novas experiências. Ainda assim, o executivo reconhece que há quem adote práticas inadequadas, motivo pelo qual considera essencial a atuação conjunta de empresas e órgãos reguladores para coibir abusos.

Moreno também alerta que a credibilidade do segmento depende da conduta ética dos seus players. “Todo setor corre riscos quando práticas inadequadas ganham espaço”, afirma. Apesar dos problemas, ele demonstra confiança no futuro da multipropriedade no país, sustentado pela profissionalização e pela presença de empresas sérias e estruturadas. Para o executivo, a experiência de mercados mais maduros, como o dos Estados Unidos, mostra que a consolidação de grupos comprometidos é o caminho para manter a confiança do consumidor.
Na Trul Hotéis, a transparência contratual e o acompanhamento próximo ao cliente são os pilares da operação. “O ponto central está em alinhar expectativa e entrega”, explica Moreno. Ele reconhece que, muitas vezes, há diferença entre o que é vendido e o que o cliente compreende, e é justamente nesse ponto que a empresa concentra seus esforços.
O grupo criou canais de atendimento exclusivos, reforçando que o proprietário é, de fato, dono da fração adquirida e deve ser tratado como tal. Além disso, a Trul mantém processos de operação com o objetivo de assegurar que a experiência do hóspede corresponda ao que foi prometido no momento da compra.
Mudança de estratégia
Segundo Maria Carolina Pinheiro, VP de Desenvolvimento da Wyndham Hotels & Resorts para América Latina e Caribe, o padrão de abordagem é um fator determinante na multipropriedade. A executiva explica que é fundamental que os empreendimentos ofereçam um ponto de atração para os potenciais clientes para que esse primeiro contato aconteça de forma natural.
“Em alguns casos, essa abordagem ostensiva não tem tanto efeito, mas isso não caracteriza um risco para o modelo de multipropriedade, pois trata-se de um produto que faz sentido para uma faixa da sociedade”, acrescenta Maria Carolina.

Ao mesmo tempo, ainda é necessário aprimorar o processo de vendas, principalmente no que diz respeito à clareza dos contratos. A vice-presidente da Wyndham pontua que essa etapa tem evoluído e, hoje, os empreendedores têm acompanhado suas vendas mais de perto.
“Com a evolução do mercado, há uma relação mais próxima entre empreendedores e compradores, e não somente vendas por meio de terceiros, como era feito anteriormente. Do lado da Wyndham, temos investido em treinar os vendedores, apoiando os projetos desde o início para que tudo seja feito de forma clara”, endossa a executiva.
Maria Carolina avalia que um dos fatores responsáveis pelo crescimento da multipropriedade no Brasil é a aplicação de padrões internacionais ao modelo. “O mercado brasileiro cresce porque isso já está sendo feito. Existem diversos processos para que o cliente se sinta seguro. Por exemplo, verificadores de vendas atuam para garantir que o proprietário entendeu o contrato, algo muito positivo para garantir a credibilidade do setor”, salienta.
Ela diz que, para que a multipropriedade trabalhe ainda mais a confiança do consumidor, é necessário mostrar cases de clientes que compraram e tiveram uma experiência positiva. “O nosso dever de casa é expor essas pessoas que compraram, entenderam o modelo e hoje estão extremamente satisfeitas. É um produto para utilização e, por isso, é necessário que seja entendido de forma clara”, completa.
Cenário atual
Rafael Albuquerque, diretor do Hot Beach Residence Club, vai na contramão do raciocínio de Maria Carolina e destaca que existe, sim, risco para o modelo de multipropriedade quando um potencial cliente é exposto a uma abordagem forçada, gerando insatisfação, desconfiança e comprometendo a reputação do setor como um todo.
“O resultado é uma imagem negativa, que afeta não apenas a empresa responsável, mas todo o segmento de multipropriedade. Por isso, o Grupo Hot Beach mantém uma postura firme e não admite esse tipo de prática em suas operações”, pontua.

Ele acrescenta que o modelo ainda está em consolidação no Brasil e, embora os avanços sejam significativos, há necessidade de evolução contínua nas práticas de ética e transparência. “Aprimorar processos, fortalecer a transparência e assegurar que todas as etapas sejam pautadas em ética são fatores essenciais para que o modelo seja sustentável, gere confiança e garanta sua longevidade”, reforça.
Assim, explica, o intuito do grupo é tornar o processo mais acessível aos clientes. “Elaboramos uma checklist com as principais cláusulas do contrato e fazemos a leitura de cada uma delas junto ao cliente antes da assinatura. Dessa forma, buscamos garantir a compreensão dos termos, reduzir dúvidas e reforçar a transparência em todas as etapas do processo”, complementa.
O executivo reforça que outra frente trabalhada para esclarecer dúvidas no modelo de multipropriedade é o treinamento das equipes, instruídas a cumprir rigorosamente os processos definidos pela empresa. “Investimos constantemente em capacitação, com foco em atendimento consultivo e humanizado, em que o cliente é orientado e informado de forma clara”, comenta.
Transformações no setor
Marcio Lacerda, diretor da Hotelaria Brasil e CEO da Ventura Resorts, braço de multipropriedade da empresa, reconhece que práticas enganosas podem comprometer qualquer setor. “As vendas precisam ser realizadas da forma mais correta possível, pois o custo do distrato é muito alto para a incorporadora e compromete a imagem do empreendimento. Todo o sucesso de uma multipropriedade está atrelado à satisfação dos clientes ano após ano de uso. Tudo o que compromete esta satisfação torna o projeto menos atraente e desvaloriza o ativo adquirido.”

Sobre a necessidade de evolução, o executivo afirma que o setor ainda precisa avançar em termos de ética e transparência. Segundo Lacerda, muitas mudanças estão sendo implementadas para garantir a satisfação dos proprietários, mas como trata-se de uma atividade muito nova no Brasil, os clientes chegam com muitas dúvidas. “Eles descobrem que o que imaginaram não foi o que compraram. É preciso dar mais transparência ao setor, para que todas as dúvidas sejam tiradas no momento da compra e não no momento do uso”, comenta.
O executivo salienta que esse cuidado pode reduzir desistências e custos relacionados a vendas, retrabalho e indenizações. Ele explica que, por se tratar de uma compra por impulso, é natural que o consumidor sinta mudanças de percepção após fechar o contrato. O importante, de acordo com Lacerda, é que o cliente tenha todas as informações no momento da decisão e que os valores estejam claros.
Por fim, sobre conformidade legal das vendas, Lacerda afirma que não acredita que a abordagem agressiva da multipropriedade viole a legislação, o que não exclui o fato de que alguns problemas precisam ser analisados e revistos. “Um importante é entregar o que se divulga no material de venda. Quanto mais transparente e esclarecedor for o processo de venda, maior sucesso terá o incorporador e o empreendimento”, finaliza.
(*) Crédito das fotos: Divulgação