Empresas jovens, com modelos de negócios ágeis e disruptivos e um universo de possibilidades a ser explorado. Fintechs, lawtechs, agrotechs, healthtechs… o Brasil vê surgir quase todo dia uma delas no mercado. Dados da ABStartups (Associação Brasileira de Startups) mostram que o número de startups triplicou em quatro anos no país. Agora, fica aqui uma pergunta: por que o turismo, que movimenta bilhões anualmente, ainda não viu uma candidata a unicórnio aparecer no horizonte?

Bem, a resposta será dada ao longo do texto, mas antes é bom dar um contexto sobre o ambiente de startups nacional. Nove anos após da fundação da ABStartups, o ecossistema é muito mais maduro atualmente. De dezembro de 2019, estudo da associação mostra que somos o terceiro país com maior número de novas startups do mundo, perdendo apenas para EUA e China. Lembra da listinha no início do texto? É isso mesmo! Serviços financeiros, varejo, dados e analytics, saúde e transporte são os segmentos mais prósperos para candidatos a unicórnios, aponta a matéria, baseada em estudo do Crunchbase.

Se antes o Vale do Silício e Londres eram apontados como berços da tecnologia, hoje p cenário mudou. Atualmente, cinco países despontam como hotspots de novas startups: Cingapura, Coréia do Sul, Brasil, Quênia e Israel. As nações estão na mira dos investidores, cada um com seu perfil de acordo com políticas governamentais de apoio ao segmento. Segundo o Gemona Startup’s Global Startup Ecosystem Report 2020, São Paulo é a única cidade latino-americana no top-30 de ecossistemas globais para empresas nascentes. Está vendo? Mais um sinal claro de que a cena no mercado brasileiro anda próspera.

Turistechs: posicionamento do mercado

E o turismo? Bem, no mundo há uma porção delas. Anualmente, a Phocuswhright Conference dedica dois dias inteiros a essas empresas. Em paralelo, iniciativas como a Competição Mundial de Startups de Turismo, promovida pela OMT (Organização Mundial de Turismo), ajudam a identificar potenciais estrelas. No Brasil, a maior novidade recente foi o lançamento da Rappi Travel. Ainda assim, vale contextualizar que a companhia colombiana não cria nada novo ou disruptivo, apenas engrossa a competição entre as OTAs.

Segundo a ABStartups, o segmento ocupa o 17º lugar entre 45 indústrias mais comuns no mercado, com 218 empresas mapeadas no Brasil. Entre as startups já em fase de tração e escala, temos conhecidas como MaxMilhas e Onfly. A lista completa pode ser acessada pelo site da Startupbase.

Segundo José Muritiba, diretor executivo da ABStartups, associação busca fomentar o ecossistema brasileiro por meio de conexões e oportunidades. “Fazemos isso por meio de conexão, gerando oportunidades e encontros entre startups e stakeholders. Na parte educativa, produzimos conteúdos e informação para startups em todos os níveis de negócio. Pensando em representação, promovemos debates entre setor público e privado e sociedade civil. Por fim, por meio de ferramental, ajudamos startups a se desenvolverem com descontos em serviços e plataformas, além de sessões de mentorias”, explica.

Indo de encontro a nossa pauta, a Liga Ventures, aceleradora de negócios com foco em startups, recentemente divulgou estudo sobre empresas nascentes do setor de turismo. Com o objetivo de mapear o mercado de Viagens e Hospitalidade, a pesquisa considerou como fonte de informações Valor Econômico, El País, Agência Brasil, Época Negócios, PhocusWire, Forbes, Travel Daily Media e Travel and Mobility Tech, entre outros veículos.

Traveltechs - unicórnio brasileira_José Muritiba

De acordo com Muritiba, associação tem uma série de iniciativas para apoiar empresas nascentes

Para entender melhor o cenário, a Liga Ventures ainda entrevistou 20 empreendedores, executivos e pesquisadores (veja o estudo completo aqui). A proposta era entender a visão deles sobre o mercado de impacto no Brasil, oportunidades e desafios. Entre os participantes, estão nomes como Bruno Lopes e Eduardo Zucareli (OYO Brasil); Leonardo Rispoli (Atlantica Hotels); Carlos Prado (Abracorp); Leonel Andrade (CVC Corp) e Marcelo Marinho (ICH), entre outros.

“Se analisarmos o mercado de startups no turismo, comparativamente, é um ecossistema menor. Ele traz muitos modelos internacionais e isso é uma visão que muitos entrevistados trouxeram. Um dos motivos que causam esse cenário mais complexo e desafiador é a própria competição no mercado, concentrado em grandes redes”, comenta João Barros, editor de Estudos de Mercado da Liga Ventures.

“Vemos uma situação parecida no setor de esportes, com marcas que dificultam a entrada de outros players. Por outro lado, movimentos estão acontecendo e transformando o segmento, como é o caso da OYO, que trouxe um novo modelo de negócio e pode influenciar o surgimento de novas startups”, acrescenta Barros.

Dificuldades do setor

CEO da plataforma de reservas VisitNow, lançada em julho de 2019, Bruno Guimarães afirma que o começo para qualquer startup é difícil. “As dificuldades, independentemente do setor, são comuns. Poucas começam com grandes volumes”, alerta. “São necessários investimentos altos para o desafio de criar uma empresa competitiva. Há ainda pouco incentivo”, completa.

Mesmo com 4 mil usuários cadastrados em apenas dois meses, o empreendedor explica que penetrar no mercado hoteleiro, já dominado por gigantes como Booking e Expedia, não é tarefa fácil. “Você pode até desenvolver algo legal, mas as pessoas já têm referências. Tivemos dificuldades, apesar dos diferenciais que oferecemos. Só tivemos êxito porque fizemos conexão com sistemas de distribuição”, analisa.

No caso da VisitNow, que atua diretamente com o setor de hospedagens, um dos empecilhos é a resistência dos empreendimentos e profissionais em abrir as portas para o novo. “O maior entrave hoje é a limitação e falta de visão. Com isso, há pouco incentivo da hotelaria em abraçar startups e colocar em prática as novidades que tentamos trazer ao mercado”, diz Guimarães.

Para Franco Zanette, sócio da a.b.seed Ventures, empresa de investimentos seed em startups SaaS e b2b brasileiras, estruturas já definidas pelo mercado atrapalham o crescimento. “Isso acontece em diversos segmentos, e o turismo está nesse quadrado. O setor é tradicional e, muitas vezes, é difícil quebrar essa casca”, avalia. “Diferente de mercados mais maduros digitalmente falando, o segmento começou a ter essa quebra de paradigma a partir do momento em que os hotéis começaram a investir em novas tecnologias”, completa.

O estudo da Liga Ventures reforça a afirmação de que o segmento ainda é conservador para aportes em tecnologia. Ainda assim, cada vez mais executivos da indústria viram a pandemia como veículo catalisador para mudanças. “Os próprios entrevistados reconhecem esse modelo, mas apontaram 2020 como um ano que não foi perdido. Houve muito aprendizado e a necessidade de acelerar processos de digitalização dos negócios”, acrescenta Barros.

Apesar do cenário crítico de 2020, o diretor da ABStartups afirma que os investimentos em todos os nichos estão surgindo, porém de forma cautelosa. “Estudos mostram que o volume de investimentos feitos pelo mercado de VC (Venture Capital) cresceram no Brasil em 2020. Conquistamos um novo unicórnio e scale-ups. O que acontece é que não podemos esquecer que temos hoje mais de 13 mil startups mapeadas em todo Brasil. Esses investimentos, ainda que aconteçam, não chegam a todos os negócios, regiões e fases, já que 41,5% das startups ainda estão numa etapa de validação e ideação”, explica.

Traveltechs - unicórnio brasileira_João Barros

Barros: competição no mercado, concentrado em grandes empresas, eleva desafio das traveltechs

Potencial de investimentos

Investidor da Asksuite, empresa de chatbots para hotéis, Zanette explica que a aproximação com a startup começou há três anos. Até então, a companhia nunca havia recebido aporte externo e crescia com a própria receita. “Fizemos uma aproximação para engajar a nossa proposta de valor relativa a marketing e vendas e ajudar na expansão. Nesse momento, eles estavam crescendo rápido e optaram por não fazer captações”, relembra.

Primeira e até então única startup de turismo amparada pela ab.seed, Zanette afirma que a escolha foi decidida pelo perfil e produto. “É um produto legal, com posicionamento. Com a Covid-19, fizemos um update, pois o mercado estava muito afetado, com muitos hotéis sem capacidade de pagamento, o que afetaria a musculatura da Askuite”.

Guimarães destaca que o turismo ainda carece de mais investidores. “Você nasce com boas ideias, mas ao longo do tempo tem dificuldades em manter a operação de pé. Investidores são essenciais e tive a sorte de conseguir um que nos deu tranquilidade no início. Outro ponto é a falta de incentivos do governo e bancos que abram linhas de crédito com condições diferenciadas para os projetos darem certo”.

Atualmente com R$3 milhões em investimentos, a VisitNow segurou os aportes devido à pandemia, mas espera retornar mais forte em 2021. “Tínhamos planejamento para investir em estratégias de mídia, mas vamos voltar com capital mais expressivo para trazer o cliente e aumentar o volume de negócios”, complementa o CEO.

Barros enxerga o novo normal como terreno fértil para o nascimento de novas empresas com aderência dos hotéis em busca de ferramentas de digitalização de processos. “O turismo está se mobilizando para melhorar, pois é um setor atrasado em relação a outros ecossistemas mais robustos. A pandemia é uma janela de oportunidades de criar parcerias sem investimentos altos. Já temos iniciativas relacionadas à geração de microcrédito para a criação de certificados e protocolos”, finaliza.

(*) Crédito da capa: StartupStockPhotos/Pixabay